As declarações de Mário Soares à porta da prisão onde está Sócrates mostrou a natureza do pensamento dos socialistas. O país é de todos mas a República é dos socialistas. Logo após o governo de Passos Coelho ter entrado em funções e tendo como programa um contrato internacional assinado por um governo socialista, o PS apressou-se a exigir eleições antecipadas. Não há mandatos eleitorais quando o PS está fora do poder.
As inflamadas palavras de Mário Soares, após a visita a José Sócrates na cadeia de Évora, fazem lembrar esta forma de ser e de estar dos republicanos de antanho: a Justiça funciona bem quando investiga Duarte Lima, Isaltino Morais, Luís Filipe Menezes ou Abel Pinheiro; mas quando se atreve a deter um ex-primeiro ministro socialista, só pode estar ao serviço de uma conspiração. Muitos socialistas partilham desta forma de pensar, mas apenas Soares a poderia expressar em voz alta, com os termos que usou.
Mas esta é uma estratégia perigosa para a Democracia. Se um partido como o PS, com a importância e responsabilidades que tem, questionar a efectiva existência de separação de poderes em Portugal, o que farão doravante os outros partidos quando algum dos seus dirigentes for detido? Queremos mesmo ir por esse caminho, enquanto sociedade?
O tranquilo processo de sucessão que decorre no Reino de Espanha tem reavivado a polémica relativa às duas formas de chefia do estado. Sublinho formas de chefia do estado, não “forma de governo”, na designação grosseiramente errada da nossa constituição, já que, nos nossos dias, o Rei não governa. Como, aliás, não governa o presidente em quase todas as repúblicas da Europa, nomeadamente na nossa.
É bom que o tema se discuta.
O grande e primeiro argumento dos republicanos consiste em que o povo deve escolher quem quer para chefe do estado, ao contrário do que nas monarquias acontece, em que o cargo é deferido por sucessão.
É, aparentemente, um bom argumento.
Porém, só aparentemente, como o demonstra a história dos quarenta anos desta nossa terceira república.
Quando, em 1976, foi eleito, à primeira volta, por mais de sessenta por cento dos votantes, Ramalho Eanes era completamente desconhecido da maioria dos portugueses. Portanto, não ascendeu ao cargo por gozar de apoio popular ou merecer a confiança dos eleitores, mas pela singela razão de que beneficiou da indicação de voto e das poderosas e ricas máquinas de campanha dos três maiores partidos políticos, os actualmente designados como do “arco do poder”.
Cavaco Silva é o menos popular dos presidentes desta república, o que não o impediu de ser eleito por duas vezes à primeira volta. Com o apoio dos partidos da actual maioria e beneficiando da completa indiferença que os portugueses granjearam pela república, tributando os candidatos com esmagadora abstenção. É presidente e, no entanto, apenas conseguiu o voto de um quinto dos cidadãos eleitores.
Já Sampaio e Soares têm a agradecer o cargo ao Partido Comunista.
O primeiro foi contemplado pela desistência, em seu favor, do então desconhecido Jerónimo de Sousa, precipitando, à primeira volta, uma vitória que os estudos de opinião indicavam ser mais do que duvidosa se houvesse segundo sufrágio.
E até o mais popular dos presidentes (goste-se dele ou não, assim foi) deve o cargo a Álvaro Cunhal, que ordenou aos seus fiéis militantes que nele votassem, ainda que preciso fosse tapar a fotografia do candidato, aposta no boletim de voto, para que o nojo não tolhesse o movimento do punho.
É, pois, bonita, mas não mais do que isso, a razão apontada por um conhecido comentador que, afirmando-se não votante em Cavaco ou seu apoiante, se declarou feliz por viver num regime em que o filho de um gasolineiro pode ser chefe do estado.
Assim é, de facto.
Numa república, o filho do gasolineiro pode ser chefe do estado. Pode ser também chefe do estado o filho do lixeiro, do médico, do ladrão, do benfeitor. Até pode ser chefe do estado o filho do chefe do estado.
Mas, numa república, com uma condição - ser de um partido político ou apoiado por um ou mais partidos.
Portanto, pode ser filho de quem quer que seja, mas alcandorado na oligarquia, onde assume a condição de príncipe.
Esse principal argumento não passa, pois, ele sim, de um conto de fadas. De uma história desse mundo onírico que os partidos políticos tanto cultivam.
Porque, por muito que não pareça, são eles quem escolhe o presidente.
Desfeita de vez esta ilusão, poderemos avançar para um debate sério e sereno.