Afinal, esses gastos eram direitos inalienáveis de cidadãos europeus no século XXI, sem interessar a forma de os pagar. Assim, o terrível sofrimento da recessão de 2011 a 2013 ficou à conta da troika e Passos Coelho, fundamentalistas neoliberais, sem haver nada a corrigir na estrutura nacional. Em consequência, a prioridade política suprema, assim que a economia começou a crescer graças à expansão mundial, tem sido repor a situação que vivíamos antes da crise. Precisamente aquela que nos conduziu à crise e que nos levará à seguinte. Ninguém parece notar a incongruência do propósito.
João César das Neves: Neste caso a resposta é óbvia: os cortes monumentais têm acontecido nas despesas, correntes e de investimento, de operação dos serviços. Os vários sistemas públicos têm trabalhadores aumentados, mas estão estrangulados no seu funcionamento. O dinheiro não é elástico; só se sobem salários e pensões cativando verbas. Isso vê-se, cada vez mais, da saúde aos incêndios, dos transportes às escolas, da segurança à cultura. Centeno reduziu o défice mantendo contentes as clientelas públicas, sacrificando as populações. Os sindicatos estão satisfeitos e ainda apoiam o governo, mas o Estado não funciona. E logo que vier um tropeço económico o défice explode, porque o problema financeiro público, se virmos o quadro completo, está longe de estar resolvido.
Interessante, também, é a forma como este embuste é conseguido, desta vez, a terceira, em condições muito diferentes. Guterres, nos anos 1990, tinha crescimento razoável, mas, gastando mais do que produzia, endividou o país, até à recessão de Barroso em 2002-2003. Sócrates, já sem crescimento que se visse, baseou o brilharete em puro endividamento, caindo na crise de Passos, muito pior. Agora há crescimento moderado, mas, dada a dívida astronómica, o endividamento ainda é limitado. A única solução é comer capital. Vendemos as melhores empresas a estrangeiros, o investimento líquido é negativo desde 2011 e deixamos decair o equipamento. Também aqui se sacrifica estrutura e produção para ir alimentando o consumo. Enquanto der.
João César da Neves: Há cerca de um ano o nosso país estava à beira de novo colapso financeiro. Desde então, uma conjuntura externa favorável e opções políticas internas permitiram uma trajectória que evitou a catástrofe e gerou esta situação auspiciosa. Mas o alívio de última hora não resolveu os nossos graves problemas estruturais. É compreensível um sentimento de libertação, mas confundi-lo com a cura gera condições para recaída pior.
Primeiro, a actual dinâmica económica é realmente bastante fraca. Ela só impressiona por vir na sequência de enorme crise, mas em qualquer outra época estes resultados seriam medíocres. Temos o menor crescimento de todas as recuperações dos últimos 50 anos. A actual taxa de desemprego de 8,8% parece baixa, comparada com os 17,5% de 2013, mas é a mais elevada da história de Portugal, exceptuando o período desde 2009, e 150% superior à média do desemprego dos 20 anos antes de 2008. Também o rating da dívida pública, mesmo após a melhoria recente e as que se esperam, permanecerá muito abaixo de tudo o que tivemos até 2011. Em termos relativos, no curto prazo, há pois razões para festejos, mas objectivamente ninguém pode dizer que está tudo bem.
O BE insiste na renegociação da dívida sem que seja ouvido . Porque será ?
O pior, porém, são os custos directos. Se Portugal não cumprir os seus pagamentos financeiros alguém perde as poupanças. Os que defendem a reestruturação assumem implicitamente que os credores que sofrem são capitalistas ricaços, boa parte deles estrangeiros, a quem não se deve dar muita atenção. Mas vão ter uma amarga surpresa, porque a coisa explodirá bem perto de casa, senão mesmo dentro dela. BCE e FMI, credores privilegiados, nunca serão prejudicados, e muitos dos ricaços alemães já se afastaram ou protegeram. Serão as famílias portuguesas que confiaram na honorabilidade do Estado, ou depositaram as suas poupanças em bancos que detêm dívida pública, a ser gravemente afectadas. Teremos uma nova saga do papel comercial do BES, desta vez com títulos do Tesouro. A política que há tantos anos o Bloco de Esquerda apresenta como a solução mágica irá atingir aqueles mesmos que ele diz querer proteger. ( João César das Neves )
Ontem na SIC os profs Ferreira do Amaral e João César das Neves ( não podiam estar mais afastados ideologicamente) convergiam na análise que faziam ao país . Um Orçamento preso por arames e uma economia a definhar. Uma banca com enormes problemas e o investimento a cair drasticamente. Tudo num país onde não há dinheiro.
O Programa Nacional de Reformas não passa de generalidades há muito prometidas. E a reforma do estado faz-se contra os interesses instalados algo que Costa não fará.
Se a economia na Europa não crescer significativamente ( o que parece certo) Portugal não cumprirá as metas do orçamento e não crescerá o suficiente. Se os resultados forem melhores do que o previsto o PS vai querer a maioria absoluta com eleições antecipadas. Se forem piores a oposição fará cair o governo porque PCP e BE já se terão afastado. Vem aí o orçamento rectificativo, o orçamento para 2017 e as autárquicas. A posição conjunta de PS+PCP+BE poderá ficar pelo caminho logo no primeiro porque Bruxelas vai exigir.
Não há dinheiro. Nem para solver os problemas da banca nem para investimento. O que o governo apresenta como novo não é mais do que baralhar e dar de novo. Entre Bruxelas e PCP e BE o PS não hesitará.
João Salgueiro e César da Neves consideram que o país está à beira de um novo resgate.
Sobre a receita que António Costa se prepara para seguir, apenas duas palavras: “Não funciona”. “Primeiro, porque ninguém acredita; segundo, porque ninguém empresta”. A única solução para o líder socialista, sentenciou César das Neves, é que no meio “da trovoada de todo o tamanho” que se aproxima da Europa, “as medidas disparatadas” deste Governo “desapareçam no meio do vendaval”. Ou isso, ou pode ser que o “país fique vacinado” depois de novo desastre. “Vai [é] ser uma vacina cara”.
Mas Portugal sempre teve capacidade de se reinventar de dar a volta por cima. Com sacrifícios e mais empobrecimento. Se João Salgueiro, antigo ministro das Finanças, considera que um quarto resgate financeiro a Portugal “pode ser inevitável”, João César das Neves vai mais longe: “Está-se à beira de um novo resgate em Portugal, e certamente uma crise muito mais vasta do que isso. A Europa está fragilizadíssima e, portanto, estamos por meses de ver aí uma coisa mesmo séria”.
Só quem não conhece a realidade do país é que acredita que se induz o crescimento através do aumento do consumo.
E é aqui que considera que "o actual Governo anda apostado em propor exactamente o contrário do que devia", concluindo que "não o poderá cumprir", embora mesmo assim "os estragos serão consideráveis".
"Sugerir estimular o consumo para obter crescimento é uma ideia de quem não conhece a situação nacional", defende. "Com a taxa de poupança das famílias em 4% e o investimento em 15% do produto, os registos mais baixos da história de Portugal, o mal do consumo é excesso, não falta de estímulo".
É com este quadro que João César das Neves considera que "as políticas de aumentos de rendimentos, pensões e salários só servirão para subir impostos, reduzir lucros e, portanto, atrasar o crescimento".
É este o objectivo do governo de António Costa. Dirá e fará o que for preciso. O programa de António Costa é conservador, quase reacionário: trata-se de voltar a 2008 e restabelecer benefícios que os grupos sociais gozavam antes da crise. Como essas regalias fizeram explodir a dívida e cair no colapso, agora o dinheiro não chegará para todos. O governo presidirá ao combate das corporações, onde ganharão as de maior influência. A reversão das privatizações e concessões nos transportes, por exemplo, não interessa ao país, ao público, nem sequer aos utentes. Está na ordem do dia só por bafientas imposições ideológicas e influências sindicais.
Por outro lado, o narcisismo do executivo é evidente. Com os olhos no umbigo, o propósito actual do PS é só permanecer no poder, quase sem olhar para o país. Dirá tudo o que precisa de dizer para ficar onde está. Obrigado pela derrota eleitoral a negociar à esquerda, aceita as agendas mais abstrusas como preço do posto, que depois o obriga ao oposto
João César das Neves : Ao lado deste sucesso, paralelo a grandes feitos antigos, surge também o velho fantasma corporativo, que tantas vezes bloqueou o País. Os portugueses, mesmo em terrível emergência, insistem em defender interesses e privilégios através de entranhados mecanismos sociais e políticos. Direitos adquiridos, favores, "cunhas", redes de influência têm enorme poder, e estão em plena acção nestes anos a dois níveis, um mais visível do que outro.
O primeiro é o protesto, reivindicação e bloqueio legislativo e judicial às medidas de ajustamento. Apesar das evidentes dificuldades nacionais, alguns grupos acham-se com direito a manter benesses que a sociedade evidentemente não consegue pagar. Pior, estes são os grupos mais próximos do Estado - funcionários, médicos, professores, pensionistas, autarquias -, precisamente os mais favorecidos nos anos de fartura. Fingindo-se desvalidos, abusam dos impostos dos pobres. As forças políticas vão à boleia do embuste, capitalizando no descontentamento e contribuindo para a desigualdade nacional. Desempregados, empresas falidas, imigrantes, contribuintes, que realmente são os mais afectados pela crise, acabam sempre sacrificados e usados como figura de retórica para preservar benesses de outros.
O segundo nível, talvez mais grave, é o das empresas e poderes económicos próximos do Estado, que têm distorcido o ajustamento a seu favor. Se as pequenas e médias ajustaram rápido, como vimos, muitas grandes empresas conseguem proteger-se graças a relações políticas. Através de rendas, apoios e influências, os bancos, construtoras, comunicações, energia, outros serviços básicos e alguns grupos económicos mantêm artificialmente negócios e investimentos insustentáveis. O capitalismo de compadres tem muito poder num país corporativo.
Há dois grupos de interesses que o Tribunal Constitucional protege. Os médicos, professores, magistrados e outros funcionários públicos e as grandes empresas , EDP, RTP, Bancos, construtoras...
O economista vai mais longe e diz que o Tribunal Constitucional «está a funcionar claramente em termos políticos. Temos um outro parlamento. E curiosamente com uma maioria da oposição».…)
Um segundo resgate, na opinião de César das Neves, até é bem-vindo, «porque é a única maneira de conseguirmos finalmente combater alguns poderes empedernidos que estão à volta do Estado».
Foram esse poderes que, na opinião do economista, levaram ao falhanço do primeiro resgate: «existe um grupinho de elite que está a fazer birra, como se isto fosse uma coisa imposta pelo Europa e não o resultado de um disparate que fizemos durante vinte anos». E identifica-os: «Há dois grupos. Há interesses directos à volta do Estado, como médicos, professores, e outros funcionários. E há outro grupo, mais oculto, e que tem a ver com grandes empresas como bancos, construtoras… e outras, como a EDP».