Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

BandaLarga

as autoestradas da informação

BandaLarga

as autoestradas da informação

A INFÂNCIA DA CRIANÇA - Prof Raul Iturra

 

criança.jpg

 


Se actualmente é difícil falar em crianças, a abordagem à temática fica mais complicada quando temos limitações do número de palavras. Mas, vamos a isso.
Dentro das várias definições de infância e criança usadas nos meus textos, há duas que me satisfazem. Criança, é um ser humano no início do seu desenvolvimento fisiológico e social que depende dos seus adultos na alimentação, nos sentimentos, no carinho, no vocabulário e no abrir da sua imaginação para entender como se desenvolve o mundo. Adultos que podem ser os pais, os tutores ou um conselho de família. Infância é a pessoa que nasce, cresce, aprende a vida intra social. Na cronologia da vida, essa criança passa a etapa da infância. Conceito que transcorre, idealmente, desde a nascença até à idade púbere, idade em que o indivíduo se torna fisiologicamente apto para a procriação de outros seres humanos. Atenção, referi reprodução fisiológica. Será que é adequado ter cromossomas só para reproduzir seres humanos? Em todos os meus textos tenho dito que isso não é suficiente. Aliás, a própria História assim parece provar. Uma palavra cheia de distinções na cronologia do tempo e conforme seja a hierarquia social. Criança, em consequência, não é um conceito biológico, é muito mais, é um conceito social. Motivo pelo qual o meu amigo e colega na cátedra do Collège de France em Paris, Pierre Bourdieu, o sábio dos sábios em ciências do homem, nunca quiseram estudar o pré púbere, como poucos de nós tem feito. Os cientistas, excepto os analistas clínicos, têm experimentado evitar a análise da infância. Muitos cientistas, envolvem a criança dentro das relações sociais, centrando, no entanto, os seus estudos nas relações. Poucos Antropólogos começam a análise social a partir dos mais novos. Normalmente, estudam instituições, como a família ou os amigos, ou seja as interacções sociais.
Maurice Godelier em 1981, editou um livro pela Fayard, La Reproduction des Grandes Hommes para analisar a passagem de criança a adulto, como David Herdt em 1987, entre os Sambia da Nova Guiné, ou eu próprio, entre os Picunche, clã da Nação Mapuche que habita na área Sul da Cordilheira dos Andes. Assistir à passagem de criança para a infância, é duro. Envolve elementos sexuais para provar, ao mais novo, que um dia terá esperma para multiplicar os membros da população. Para tal, é preciso observar as relações eróticas entre um púbere e uma criança, que oferece o seu esperma, antes de casar com a irmã do iniciado.
O ritual denomina-se fellatio, e quem é alimentado pelo púbere é quem ainda não entrou numa mulher, permanece com a criança até ser adulto, por outras palavras, até que ele próprio produza sémen. Ritual praticado entre os Baruya, os Sambia e os Picunche. Quando apresentei o meu livro do ano 2000: O saber sexual das crianças. Desejo-te porque te amo, Afrontamento, Porto, o auditório ficou escandalizado.
Devo confessar que eu também, ao viver na casa dos homens entre os Picunche e observar o que observei. A prova final é uma masturbação colectiva entre as já não crianças, mas infantes, acompanhados pelo rapaz que lhes deu o seu sémen, que, acabado o ritual, casa com a irmã do seu iniciado, à qual acede apenas para engendrar filhos, continuando a morar na casa dos homens tendo o seu iniciador como companheiro. Não é homossexualidade, é um rito de passagem que, entre nós, também se pratica, não como cerimónia, mas como felonia, ao correr dinheiro entre a criança e, neste caso, o seu violador. É apenas pensar no caso da casa Pia.
A criança, passa a adulto, a seguir à fellatio ritual. Entre nós, depois de namorar uma rapariga que é a nossa companheira, mesmo que o seja pela via do aparecimento de filhos.
Falar de criança e a sua passagem ritual a adulto, é, por vezes, difícil de relatar sem ofender…
Raul Iturra
1 de Novembro de 2014.
lautaro@netcabo.pt

 

 

O TERRORISMO COMEÇA NA INFÂNCIA - Prof Raul Iturra

 

 

Hipótese de Etnopsicologia. Para o começo do ano escolar

 

 

 

Vários conceitos são debatidos hoje em dia em relação à infância. Essa infância que começa aos quatro meses da conceção do ser humano e acaba, no dizer dos meus santos padroeiros, pelos quatro ou cinco anos. Com a entrada da criança no entendimento da História, na conceção de não ser o único na terra, nem o mais amado entre todos os seus pares e/ou membros de família. Em síntese, no entendimento de ser mais um membro do grupo social que o acolhe, ama, forma e educa ou faz dele um membro da interação social.
Não consigo esquecer o fuzilamento de um delinquente: tinha eu cinco ou seis anos, ele, 40. Era para mim um herói nacional apenas pela tristeza que causava no meu entendimento e sentimento o poder de outros, mais bem formados, lidos e estudados – eu tinha já lido Shakespeare, Mitos Gregos, Dickens, Neruda, Mistral, aliciado pelos doces pais de um querido lar – face ao homicida que não sabia ler nem escrever e não tinha trabalho. O seu saber era beber e bater: o Tucho Caldera – alcunha e nome. E era o meu herói: nem soluçou na leitura da sentencia de morte dos Doutos Magistrados do Tribunal da Burguesia que comandava o país. Abandonado pelo pai primeiro, mal tratado pela mãe a seguir, um Chaplin do Século XX. A sua escola foi a rua, a luta com os iguais, a mendicidade, a fuga ao saber denominado erudito ou, como gosto dizer, ao saber público que faz de um ser humano uma entidade obediente à lei. Se assim não fosse,  seriam os orfanatos, a cadeia para menores – escola de aprendizagem da pedofilia e da homossexualidade. Dois conceitos que os meus santos padroeiros não apenas tinham condenado, bem como denominado de aberração sexual. Talvez, até ao dia de hoje, pelos
Católicos Fatimizados que habitam a nossa terra ou pelos industriais capazes – como dizem Gracchus Nöel Babeuf no seu Manifeste de Plébéiens (1785); Sylvian Marechal, no seu Le Manifeste dés Égaux (1795); Marx e Engels no Le Manifeste Communiste (1848) e Menchevique de Durkheim (1885) no seu manifesto “Socialista” (1924) – que criticam um segundo conceito: o saber dos proprietários dos meios de produção em retirar a mais valia do resultado do trabalho dos que nada têm, excepto a sua capacidade e força de trabalho e muita família que possa juntar bens e uma certa riqueza no viverem juntos e compartilharem o teto e a panela, como diria Jack Goody em 1796.
Manifestos todos não aplicados à vida de “Tucho Caldeira”, o meu herói. Babeuf foi guilhotinado pelo o seu manifesto, Marechal expulso do partido de Babeuf – os Jacobinos – e exilado, Marx na pobreza e fora do seu país, alcoolizado. Todos estes tinham começado as suas vidas num berço de ouro e acabam da forma proscrita que relato.
Porque o terrorismo nasce na infância. No meio da obediência à lei, à família, à interação, especialmente, às ideias religiosas. As que ordenam uma subordinação que mata o inimigo, de outras ideias, os de outras práticas sociais, de outros comércios. Os que, por defenderem a sua causa divinizada, fazem o bem enquanto organizam as formas de trabalho que permitem o pensamento e a definição de outros conceitos mencionados no começo de este texto. A defesa que os pais precisam organizar, à Friedman, é estar perto do sítio no qual a sua criança cresce. A divisão do trabalho, definida em 1892 por Durkheim, passa dos liberais e socialistas aos que trabalham para sustentar a casa, aos que organizam comités de vigilância e evitam o assalto ou atropelo das suas crianças e docentes. O Direitos Humanos não apenas definem a integridade da pessoa, bem como a vida sem temor, livre, longe do medo vivido por todos nós  em datas como as do dia de hoje (11 de Setembro),  ou por outros, como eu, ainda antes.
Dickens, Shakespeare, e todos os referidos antes por mim, não são sujeitos do que a minha antiga estudante, hoje Ministra da Educação, gostava de ver: uma população capaz de entender a História pelo entendimento dos seus acontecimentos, pelo facto da arrogância de um dos seus grupos que ataca primeiro por causa de uma riqueza, ataque  esse ripostado, e a organização de um imenso grupo de países, maior do que no Século XIX que entra em luta. O Século XVII é a libertação da submissão do ser humano ao ser humano, o XIX o da delimitação de fronteiras de Países e Identidades, o XX a apropriação possível da mais-valia, enquanto o XXI que começamos, a aprendizagem da defesa pessoal pelos próprios membros da família.
Arrogância e raiva que começa na infância, da forma que analisamos com Alice Miller em
The Natural Child Project. A criança natural é a que atropela até a sua submissão. O motor de partida é o erotismo insatisfeito que é aprendido ao entender a História. E, desenvolvido a resiliência, do que vamos tratar em outro texto.

 

Raul Iturra

 

8 de Janeiro de 2014.

 

lautaro@netcabo.pt

 

SERMOS AVÓS. ENSAIO DE ETNOPSICOLOGIA DA INFÂNCIA

 

 

http://www.youtube.com/results?search_query=Tchaikovsky%20Coronation%20March&search=Search&sa=X&oi=spell&resnum=0&spell=1

Anton Shirokov - Tchaikovsky "Festival Coronation March"

para os nossos netos Tomas Mauro e Maira Rose filhos de Cristan Van Emdem e Paula (nascida Iturra) e May Malen e Ben e os que virão, como Javier Salvador Raúl, nascido a 18 de Agostos de 2011, filhos de Felix Isley e Camila ( também nascida Iturra)…

Dois acontecimentos são do meu interesse: a eleição do próximo Presidente do Chile; e a visita dos nossos filhos e netos lsley a Portugal.

Una coisa por vez. Os netos primeiro, analisados à laia dos antigos proprietários do Chili, palavra Aimará da nação que reside no norte da hoje República do Chile

 

 

 

 

 

 

Foi um telefonema longínquo. Da nossa filha mais velha. Disse-me: - nasceu! Era o dia em que eu apresentava mais um livro sobre crianças, na Cidade da Guarda, com Daniel Sampaio. Fiquei sem palavras. Como era evidente, tinha estudado crianças ao longo de dezenas de anos. Com amor e paciência, em silêncio e com orgulho paternal. Como me era habitual, tinha solicitado aos mais novos, desde o primeiro dia, detalhes sobre a sua genealogia. Fomos construindo esse precioso documento entre os Picunche da Cordilheira dos Andes, as crianças da Freguesia de Vila Ruiva, na Beira Alta, e, ao longo de vários períodos de tempo, normalmente um ou dois anos de cada vez, na Paróquia de Vilatuxe, na Galiza. Sítios diferentes e distantes. Em todos eles, as crianças vinham ter comigo no dia seguinte com o diagrama da composição do lar. Perguntava-lhes: - Quem te contou tudo isto? A resposta habitual era: Eu só, conheço a minha família. Retorquia eu: - mas é assim tão pequena? A mais esclarecida das crianças sabia dizer que não, que havia mais familiares noutros locais da terra. O meu pedido habitual era para trazer um grande lençol de papel com a família toda. Lá iam as crianças e dia após dia, o lençol ia sendo acrescentado. À medida que os acréscimos iam aumentando o «lençol» e perante e mesma pergunta: Quem foi que te contou tudo isto? A resposta de todas essas crianças, de países diferentes, distantes e de línguas diferentes – luso português, luso galaico, mapudungu (1) e castelhano pré cordilheira, era unívoca: eram sempre os avós que guardavam a memória da família. Não por escrito, mas ficava para sempre ao fazermos esse grande lençol. Lençol de papel que guardo comigo, de tantos sítios visitados, transferidos para os meus livros.

Mas, uma coisa é essa alegria de sermos pais, outra, completamente diferente, é subir na hierarquia das relações de família. Sermos pais, é o cuidado de amamentar, acarinhar, vestir, ensinar, passear, ter a atenção concentrada nos trabalhos dos nossos descendentes e tomar conta dos amigos que venham a ter, se ou não convenientes e adequados. Como relato na minha Monografia de 2008, em formato de e-book, Mis Camélias – Recuerdos de padres interesados(2). Esse trabalho dura até ao dia em que a nossa descendência cresce e apenas consulta a nossa memória de como é criar os filhos. Para nós, pais interessados, respondemos com cuidado e sem receitas: nós fizemos isto, quanto a ti, deves saber como correm os tempos, diferentes do dia em que eras criança.

É o papel do laku e da chuchuou kudé papai entre o clã Picunche da Nação Mapuche da Cordilheira dos Andes, que estudei ao longo de dezenas de anos. É esse ver, ouvir e calar, esse dia que é apenas para os avós estarem com os filhos dos filhos e contarem histórias do capuchinho vermelho ou de como era a infância dos seus pais. A infância inteligente e paciente, não essa infância dos berros e do não estudo, essa é a memória que deve ser guardada até os nossos próprios filhos a narrarem E, se for preciso, desenhar caras paterno/materna, levar para a casa um neto se os nossos filhos precisarem, mas educar como eles fariam se estivessem presentes. Para não cortar laços, para guardar a memória do carinho desse pai/mãe necessariamente ausentes. Ser laku é um papel muito sério, não é para brincar nem para, às escondidas dos nossos filhos, corrompermos o comportamento dos nossos netos.

No dia que fomos laku e kudé papai, a minha mulher e eu passámos a ter esse imenso cuidado de não falar para corrigir, se os pais estão presentes; se ausentes, fazê-lo à moda dos pais. No dia sagrado dos avós, uma vez por semana, como Daniel Sampaio me tem confidenciado e relata num dos seus livros, toda e qualquer tarefa fica de parte, como nós fazemos com Tomas e Maira Rose van Emden, e com May Malen I Isley, ou teríamos feito com Bem I Ilsley, se não tivesse entrado na eternidade uma hora após o seu nascimento. Os nossos filhos passaram a ser crianças durante um tempo. A kudé papai foi a mais importante, como mãe da mãe frustrada.

Naquele dia na Guarda, desse ano de 2000, ao saber que era laku, não parei de escrever livros para os nossos mais novos saberem como eram os seus pais quando tinham a sua idade. E para eles saberem como são as outras crianças. Passei a ser um pai distante e um avô sempre disponível conforme os cânones dos nossos descendentes. É assim que penso, é assim que faço, porque os adoro profundamente.

1 Abuela paterna y sus nietos: kuku / Abuela materna. Sus nietos y nietas: chuchu / Abuelita: kudé papai (dicen así los niños). Abuelo paterno y sus nietos: laku / Abuelo materno y los nietos del mismo: cheche.

A nota de rodapérefere o libro citado no documento principal:

2 Iturra, Raúl, 2008: Titulo : Mis camélias. Recuerdos de padres interessados, pode-se aceder em

URL: http://www.monografias.com/trabajos917/camelias-etnopsicologia-infancia/camelias-etnopsicologia-infancia.shtml.

Raul Iturra

15 de novembro de 2013

As ditaduras e o saber das crianças.

 

 

Para a Sra. Dra. D. Dulce de Freitas.

 

1. Os eruditos.

 

A ditadura não é virtual, é a materialidade da acumulação do poder nas mãos de apenas de uma pessoa que governa. A ditadura não é virtual, assume todos os poderes para agarrar. Para agarrar qualquer um que pense de forma diferente. Qualquer um que deseje a divisão do comando do poder. A ditadura apoia-se, normalmente, nas armas e na proibição de pensar de todos os seres que queiram serem diferentes. Principalmente, na proibição de pensar. O perigo da ditadura não são os opositores políticos, são os intelectuais das ciências, das ciências definidas, normalmente, como sociais, especialmente. Ou, qualquer um capaz de pensar de forma diferente e angariar forças para se opor ao ditador. Ditador nunca eleito pelo voto, sempre apoiado pelos interesses da gestão dos bens e da força de trabalho, das pessoas que os possuem e os querem alargar. Lucrar. Ganhar, triplicar o poder sobre os bens e as pessoas. A ditadura é a cobiça dos proprietários que apertam os laços sociais, da memória e do pensamento, para lucrar sem pagar e aumentar a mais o valor já incrementado na democracia formal gerida entre proprietários de bens e proprietários de força de trabalho. Tal e qual Tomás de Aquino1 define, tal e qual Ludwig Feuerbach2, professor de Karl Marx3, apela para a greve, como Aristóteles4 tinha já definido, como Durkheim5 fala mais tarde, como Wagner6 escreve na sua ópera, como Max Weber7 analisa para os diferentes grupos do mundo. A ditadura é o governo do povo pela mão da tirania que eu defino como o grupo de avareza que tenta se fazer bem enquanto cobiça a força de trabalho dos seres humanos e controla o seu pensamento. Pensamento, a arma mais difícil de combater pela tirania. Não pela definida tirania dos gregos, que é mitológica. Falo directamente dessas que tiveram resultado em nós e persistem ainda nas suas consequências. Como observo nos países que tenho o prazer de estudar, essa tiranias que temos vivido no Chile, na Espanha, em Portugal, entre outras que também nos têm afectado, como as de Jugoslávia, a do Iraque, a de Burundi, a de Angola, a da Indonésia, de grupos de nacionalidade Estodounidenese que Oliver Stone8 soube-nos expor como tese. Noertamericanos a possuírem bens e pessoas além fronteiras...Formas de Ditaduras, há tantas! Os eruditos souberam bater e combater. Definirem. Analisarem. Fazerem teoria. Para combaterem. Para se salvarem da dor quotidiana. Mas, e as crianças? O que entendem, sabem, percebem, vivem, exprimem. As crianças, sentem e entendem? Sublevam-se? Como lutam? Qual a herança? Tentei falar já sobre o assunto9, mas toca pensar outra vez. Ao pé do leitor do quotidiano e não só.

 

2. As crianças.

 

Não tenho dúvida nenhuma que a criança vive, sente, não entende mas imagina. Imagina tudo o que há de pior numa sociedade na qual há uma concentração do poder nas mãos de uma pessoa. Ou, que parece ser, para a criança, uma pessoa, essa que aparece sempre a falar, a aconselhar, a dizer. Preside os desfiles, convoca as Câmaras, administra justiça, tem o poder sobre a liberdade das pessoas ou do afastamento das mesmas. Sabe-se da sua vida porque é estudada, de forma obrigatória, na instituição escolar. Fala-se, caso se falar, em silêncio, em casa. Nunca na rua. A infância está dividida. Há casas onde se fala com louvor do ditador, há casas onde é proibido se referir ao facto, hás casas onde se chora o ser humano desaparecido. As crianças começam por sentir que os adultos não sabem mentir, que podiam libertar-se de serem apressados se disserem – santa inocência dos mais novos -, que eram entusiastas aderentes do omnipotente senhor que aparece todos os dias nas fotos dos jornais, que decide qual escola funciona e qual não, que sabe as vias por onde andam todo e cada um dos indivíduos da sua pátria. Há as crianças que têm medo por existir, além da Omnipotência divina, essa outra Omnipotência humana que comanda no sussurrar das conversas de casa, caso essa casa fale do social. Raro é que aconteça em meios que dependem para viver, do favor e simpatia do chefe que é o degrau entre o Omnipotente Senhor e a sua distinta esposa – essa dupla necessária para serem o exemplo do dever ser de todo lar: ou o santo ritual do casamento, ou castidade absoluta para nunca comprometer as horas devotadas ao governo do povo e assim, nunca pecar por abandono da vigilância do corpo social.


Pecado, conceito recriado para além dos Concílios das Igrejas, um pecado social que não se pára no Inferno, mas sim na policia política, essas garras esticadas pelas sombras da noite e deter as ofensas de pensar em se ser opositor. Que indecência! Dizem os adultos, falar mal do nosso salvador! Mais um outro encrave de desentendimento dos mais novos que sabem existir um Nosso Senhor que morreu na Cruz, e, a folhas tantas, um nosso senhor que salva a Pátria sem ter que ir ao sacrifício. Embora diga esse nosso senhor, Ai Deus, quanto trabalho me dão! E a criança tem o duplo castigo da culpa do pecado ritual e do pecado civil que cai, normalmente, sobre os seus adultos – esses seres que devem ser o seu exemplo de comportamento e acabam por ser culpados por pensar. O que é que posso eu dizer? A criança pergunta-se. É o que as de Pencahue no Chile, me têm sempre repetido sempre: é preciso concordar com a professora ou o professor, se eu não concordo, o meu pai pode desaparecer. Como em Pencahue acontecia, pais que nem túmulos tinham porque não havia corpo...estranho!, quando há morto há cadáver. Mas cá, o cunhado do nosso senhor é o proprietário de todas as terras e ele sabe por onde andamos e murmuramos e para estar mais certo de ninguém falar mal dele ou do seu senhor cunhado, nomeia nos altos mandos do Concelho e dos bancos e da escola, e da paróquia, aos seus fiéis servidores. Será o nosso senhor uma divindade que é preciso respeitar porque anda em todos os sítios? É a forma lenta por meio da qual a pequenada entende que é obedecer a lei; e a três senhores: o do Céu, o de casa, e esse que manda. Ele em direto, ou os seus parentes e compadres que gerem o património Nação, terra de todos que era antigamente, mas hoje em dia terra unitária do ditador, a sua família e os seus amigos investidores. Doutor, diz Marcelo de Pencahue, esta terra nunca foi nossa, foi dos conquistadores que civilizaram o país, esse grupo que se pensava eram ignorantes que antigamente. Porém, senhor doutor, as ruas levam esses nomes, dos capitães que civilizaram aos nossos antepassados nesta terra em que vivemos. E eu pergunto ao Marcelo se é assim que na sua casa pensam e ele cala...e diz-me ao ouvido que está proibido dizer o que em casa falam. E eu digo...e ele cala...e eu pergunto...e ele cala. Até os pais falarem comigo e pedirem-me para nunca mais perguntar. A censura do ditador, que já não dita, fica como herança entre esses pequenos que me acompanham a escrever os meus livros. Como vão eles comparar? Com o quê? Será que nas aulas de História se fala das Repúblicas que escolhem os seus governantes? Estudo em profundidade os textos de Pencahue, tal e qual os de Portugal antes do 25 de Abril de 1974, tal e qual os da Espanha dos anos 39 do Século XX até quatro anos mais tarde a seguir à morte do ditador em Novembro de 1974: repete-se sem hesitar a história dele ter sido o mais jovem general de todos os tempos. História que fica gravada, pela obrigação de ensinar, nas palavras de maestros que deviam simpatizar com o ditador ou perder o trabalho. E, tanto se diz e se repete, que os docentes ficam convictos, agradecidos e infelizes agora que tudo parece que vai mudar. Ou, mais duro ainda, calar a morte, detenção ou desaparecimento do pai, da mãe, do tio, sem poder gritar a dor nas ruas como os vizinhos sempre fazem. Essa rapariga de Vilatuxe sempre pensou que esse pai ao pé dela, a seguir a sua volta da prisão, era um homem de máscara adesiva, como se via na Espanha nos capítulos do filme televisivo Missão Impossível, 1996, de Roland Joffé. Criança que nunca soube a explicação da morte do pai: os adultos pensavam que enquanto a criança menos saiba, mais seguros eles ficam. O moto de toda família resignada a suportar o nosso senhor no país, essa presença grande, a viver em todos os cantos da vida. Ai se souber e entender essa infância que em casa não se estava feliz! Uma geração completa resultado do pensamento temente e contraditório dos pais. Filhos que, para sua sorte, nunca souberam bem o que aconteceria à mudança do ditador: diz-me um dia o Xastre (luso galaico para o Alfaiate do luso português) Velho da Espanha: esse que agora será ditador, é filho ou neto do que morreu? O seu nome mudou, já não é Caudillo, é Rei, queira-me explicar, chileno. (a alcunha que me davam na Galiza, Paróquia de Vilatuxe, en que talvez nem o meu nome sabiam). Povo e crianças entontecidas pelo cortar da informação pública, desligadas do debate, sem lógica para se basear nas suas ideias, sem método comparativo. Quem debatia, o fez calado e em casa, como esse operário português da palavra, José Gomes Ferreira. Esse poeta que lutou com a pena e o papel, como vários deles.


Mas o José não era povo, menos ainda os que liam os seus versos. Hoje, celebridade comemorada com uma descendência perdida na transição abrupta entre o que se lia em casa, o que se calava na rua, o que era preciso dizer para criar a nova república que Gomes Ferreira10 não chegou a formar, desapareceu e, com ele, a orientação dos mais novos, revoltados contra o regime mas não reordenados para organizar uma nova forma de governar. Lutadores infatigáveis, mas como todo Portugal, com um fardo pesado por herança: contra quem lutou agora, se apenas sei estarem contra? A transição portuguesa... anarquista...diferente...sem um orientador da mesma...sem um ditador a ser julgado. Era melhor esquecer. O que entende a criança? Um pandemónio de ideias e emoções- um salto entre a geração que lutou em silêncio e a geração mais nova a organizar a vida socialista ou a vida do lucro. De duas, uma via: não há amos, há apenas muito dinheiro para comprar tudo o que antes nunca tive.

 

3. A nova juventude.

 

 

A juventude do debate. A juventude da empresa. Da livre e pequena empresa. Das habilitações. Da corrida ao poder. Da corrida às formas de escrita a favor, em prol da confiança, a liberdade de expressão na qual tudo e mais alguma coisa se diz, sem se reparar se o que se diz ajuda ao debate político. Parece que a morte ou a prisão do ditador fez desaparecer a necessidade do debate político, do debate do futuro da República o do Reino, conforme Chile, Portugal ou Espanha. Parece não haver mais ditadores desde que em 1998 foi assinado um tratado internacional para responsabilizar os governantes de qualquer abuso de poder. Parece que não há mais motivos para debater que não seja o da livre empresa, essa de Adam Smith11 nos fornecera e que Hegel12 multiplicara na sua pesquisa sobre os motivos que levam aos seres humanos a se governar: pela ciência e os conceitos. Pela posse e gestão dos recursos. Liberais e Hegelianos, retorquidos por Marx13 e outros, poucos, autores, entre eles, Durkheim14. Formas de debate que não são consideradas pela geração da descendência dos revolucionários que tentaram, os seus pais e avós, acabar com as ditaduras que tiveram que sofrer.


Entre o silêncio desses adultos, a não explicação dos factos às crianças, ficou no imaginário das mesmas o medo à rebelião e ao debate, por enquanto. É evidente que muita infância da ditadura é hoje parte do poder do país que sofreu mortes e perseguições, mas, era possível entender essa mente, que a ditadura servia para acumular? Não passa de um mito de um homem mau, personalizado no nome do ditador. Razão tem o Advogado Coordenador do julgamento do ditador do Chile quando, num jantar que muito me honrou, disse-me: é preciso desvincular factos de tortura de pessoas, que evidentemente o ditador comandou, desse outro tipo de torturas feitas pelos investidores que o apoiaram, a fome, o desemprego, a censura, a ocultação de corpos, porque, sabe? Há muito mais pessoas envolvidas em diferentes tipos de delitos nunca contabilizados no nosso Código Penal. Acrescentei: entre eles, meu caro, as crianças, que nem sabem que estão a viver uma história que tem um vazio: o dos anos de luto a par dos seus anos de infância. É, meu caro leitor, a herança que a ditadura deu à nossa descendência: o silêncio da História. Uma História que é dos velhos. Em Portugal, uma tarde, a minha amiga Dra. Dulce de Freitas de Ferreira de Almeida, disse-me um dia na sua casa a que sempre me convidava quando aconteciam factos num Chile, país que não podia entrar por causa de exílio: sabe Raúl, todos nós lutámos e calámos enquanto combatíamos e protegíamos as nossas crianças, sem nunca lhes ocultar a verdade. Mas, sabe? Somos de outra geração: já não é connosco e com os nossos filhos, é com os filhos deles, sabe.... Esse verbo que ela sempre usava nas suas conversas. A Dra. Dulce sempre teve razão, no entanto, sempre teimou em dizer que era preciso abrir o debate entre adultos perante os jovens que pouco sabem do real da ditadura, exprimida logo na introdução. É o que dela e da sua família aprendi. E tenho tentado fazer. Com o seu filho, que foi o meu amigo em tempos.

Mais nada para dizer, hoje. Seja o leitor a entender o que é transição numa República de empresários e pequenos capitalistas.

Raúl Iturra. Pencahue, Chile, quando recuperei a nacionalidade e não me cansava de estudar os Picunche, clã da Nação Mapuche, os antigos donos do Chili, palavra da Nação Aimará, norte do deserto do Chile que em castelhano o em luso é o fim do mundo. Uma realidade que descreve uma louca geografia que começa no deserto e acaba na Antártica.

6 de Janeiro de 2001

lautaro@mail.telepac.pt

Reescrito e revisto a 23 de Outubro de 2003, quando já era

lautaro@netcabo.pt

1 Tomás de Aquino, (1267-1273) 1998: Summa Teológica, Parte I-Série II, Questão 84, Bac, Madrid.

2 Feuerbach, Ludwig, (1842) 1988: Teses provisórias para a reforma da filosofia, Edições 70, Lisboa

3 Marx, Karl, (1846) 1932: A ideologia Alemã, Oxford University Press, Grã-Bretanha

4Aristóteles, (c.323 A.C.) 1992:Étique à Nicómaque, Les classics, Presses Pocket, Paris.

5 Durkheim, Émile, (1893) 1971: A divisão do trabalho social, Presença, Lisboa.

6Wagner, Richard, 1845: Tanhaüser, várias versões.

7 Weber, Max, (1904-1919) 1998: Ensayos sobre la sociología de la religión, Taurus, Madrid.

8Stone, Oliver, 1991: J.F.K.

9 Iturra, Raúl, 1998: Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças, Profedições, Porto

10 Gomes Ferreira, José:1947: Ruas Desertas; 1961: O mundo dos outros; 1980: Relatório de sombras; 1981: Diário do Lume líquido.

11 Smith, Adam, (1776) 1983: A riqueza das nações, Calouste Gulbenkian, Lisboa

12 Hegel, Friedrich, (1807) 1999: A Fenomenologia do Espírito, Vozes, Petrópolis.

13 Marx, Karl, (1844) 1977: Towards a Critique of Hegel´s Philosophy of Right, MacMillan, Londres

14 Durkheim, Émile, (1904-1905)1938: L’évolution politique en France, PUF, Paris. Livro que faz parte do curso do mesmo título por meio do qual Durkheim colaborou à organização de Educação do Governo Socialista de Gambetta e redigiu a política escolar desse anos.

Marx, Durkheim e a teoria da infância

 

 

 

 

Para os meus discentes do Curso de Antropologia do ano académico 2001-2002, que me motivaram para a pesquisa destas ideias.

 

Não é a infância de Marx e Durkheim que eu refiro. Refiro-me ao que eles afirmaram sobra a infância, o meu tema preferido, o da criança.

 

Pouco se sabe do facto de Émile Durkheim ter usado, em conjunto com a sua equipa, o método do materialismo histórico para a sua análise da vida social. E, no entanto, no seu livro escrito em 1888 e publicado como obra póstuma em 1928, Le Socialisme, Durkheim, faz uma apreciação da obra de Marx, tal como a escreve em Dezembro de 1897, na Revue Philosophique, o seu “Essais sur la conception matérialiste de l’histoire”.

 

Que Durkheim saiba de infância, é um dado adquirido. Que Durkheim se baseie na obra da Marx, é desconhecido.

 

No seu livro, também póstumo de 1925, L’Education Morale, Durkheim diz que “o filho de um filólogo não herda um único vocábulo. O que a criança recebe dos seus pais, são faculdades muito gerais...há uma considerável distância entre as qualidades naturais da infância e a forma especial que devem adquirir para serem utilizadas durante a vida...” . Ao longo de duzentas páginas ou mais, o nosso autor desenvolve a sua teoria sobre a educação moral e a pedagogia, para acrescentar mais à frente que a existência de classes sociais, caracterizadas pela importante desigualdade de quem tem e de quem apenas possui a sua capacidade de produção como força de trabalho, torna impossível que contratos justos sejam negociados, entre um possuidor e um não possuidor de meios de produção. O sistema de estratificação social existente, constrange uma troca igual de bens e serviços, ofendendo assim as expectativas dos povos das sociedades industriais. “A exploração impossibilita...uma igualdade necessária para exprimir a vontade...” (a minha tradução)

 

As ideias expressas nas páginas 209 e seguintes, delimitam a sua ideia original do desenvolvimento das capacidades da criança. Estas parecem depender da classe social, como refere Durkheim e os seus comentaristas.

 

Como comenta Marx, no seu texto publicado em 1951, mas escrito em 1857 e 58 o Grundisse - um adulto não pode tornar a ser criança excepto se age como um pequeno, o que até lhe parece impossível, por causa da virtudes e formas estéticas de agir dos mais novos. Formas de comportamento esperadas dos mais novos, que, por causa da época, da relação social, denominada capital ou troca de bens, entre pessoas, são doentes.

 

A relação que procura o lucro, retirando mais-valia do trabalho de outrem, e especialmente de crianças, é uma forma doentia de ganhar ou de criar bens. No entanto, na conjuntura analisada, o nascimento das relações entre seres humanos orientadas pela obtenção de lucro e mais-valia, retirada dos não possuidores de bens, as crianças devem passar a ser crianças precoces.

 

Na nossa sociedade, a infância não tem direito a brincar, nem a desenvolver o seu imaginário, devido ao facto de começar a trabalhar desde muito cedo na industria e assim apoiar a sua família. Ideais desenvolvidas ao longo de mais de cinquenta páginas no texto referido, denominado também de Fundamentos para a critica da Economia Política.

 

É a partir destes textos, bem como das ideias do trabalho infantil que não desenvolve intelectualidade na infância, referidas por Marx no seu texto O Capital, que Durkheim elabora a sua teoria da pedagogia quer no texto citado de 1925, quer ainda, no seu Leçons de Sociologie. Physique de Mœurs et du Droit de 1904 e 1908, publicado em Istambul em 1934 e na França em 1950.

 

A análise materialista da História é usada por Marcel Mauss, no seu texto denominado de forma comum, Ensaio sobre a Dádiva, ao dizer que Durkheim tem razão na sua ideia de que “o nosso Estado retira de nós as nossa posses e capacidades por meio das leis e dos impostos: o trabalhador deu a sua vida e o seu trabalho à coletividade por um lado, aos seus patrões por outro...não estão quites com eles através do pagamento do salário.” (página 187 da edição portuguesa de 1988) Ideias de Marcel Mauss, baseadas na obra de Durkheim e Karl Marx.

 

É apenas um conjunto de ideias para expandir o saber sobre a criança. É preciso procurar entre os autores associados às atividades revolucionárias, como Marx, que de facto, apenas foi a base teórica para outros agirem; ou como Durkheim, jamais associado a Marx, menos ainda à obra de Mauss, quem teve o trabalho de juntar o material da imensa obra de Émile Durkheim, para a publicitar com os seus próprios comentários.

 

Penso que a nossa mentalidade ideológico-classificatória, desdenha Durkheim como analista social e pedagogo, vira as costas à obra de Marx por não andar na moda da globalização, e desconhece o socialismo de Marcel Mauss. Os quais começaram a entender a realidade a partir da análise da atividade e epistemologia da criança. Epistemologia que, por causa de eles, posso eu hoje entender e exprimir aos meus discentes, está contextualizada pela classe social. Entender a criança, é entender a obra dos autores citados que lutaram e morreram por causa das crianças. Tal o caso histórico de Durkheim, como o desconhecido da vida de Karl Marx, ou a doença mental de Marcel Mauss que, aterrorizado por causa dos seus descendentes, intelectuais e consanguíneos, poderem desaparecer na Segunda Guerra Mundial do Século XX, tal e qual tinha sido na Primeira Grande Guerra, fugiu do real refugiando-se numa calma paranoia.

 

 

 

Raul Iturra

 

19-de Outubro de 2013

 

lautaro@netcabo.pt

 

 

 

IMITAÇÃO À VIDA* ENSAIO DE ETNOPSICOLOGIA DA INFÂNCIA

 

El Ângelus, 1857-1859, por Millet

  

 

Para Marco Veiga, quem dedicara duas horas do seu raro tempo em me resolver um problema informático.

 

 

 

E para os meus netos Tomas e Maira Rose, os van Emdem da Holanda, e Ben, May Malen, Javier, Max Raúl ou os Isley da Grã-Bretanha, fihlhas de repaigas nascidas Iturra- González.

 

http://www.youtube.com/watch?v=MjmNzfk28B0&feature=related

 

Beethoven, Missa Solemnis, em D Dur, Área com Coro: Credo.

 

 

 

Bem sei do filme que existe com este título* de 1956, com Lana Turner e John Gavin. Como todo leitor deve supor, não é do filme que queria falar, muito embora a temática seja semelhante ou tenha sido feita. Os adultos do filme imitam outros para aprenderem a viver e comportar-se como for conveniente aos roles que representam. Crianças que gostam de trocarem papéis: a criança preta quer ser branca e tem vergonha da mãe que é preta, enquanto a criança branca adora brincar a ser preta para se agarrar às saias da sua ama africana. A criança africana diz ser filha da patroa branca, que imita atrizes para conseguir um papel no teatro. É assim que a imitação começa. A vida é aprendida da observação dos comportamentos adequados, como escrevi um dia num texto meu que Luís Souta corrigiu, com amizade e fraternidade. Mais uma imitação à vida: as correções do Luís estimularam a minha imaginação cultivada e treinada em ciência, criando assim uma outra categoria: a conduta conveniente. A conduta adequada é pública: saber falar, dizer as palavras atraentes, usar os vocábulos aceites em sociedade, cumprimentar de mão estendida, tirar o chapéu, e outras. Tal e qual me ensina Ana Paula Vieira da Silva no momento de fixar o português dos meus textos. A conduta adequada é a que corresponde ao grupo de pares com os que partilhamos a vida.

 

 

  A criança sabe distinguir muito bem entre os dois tipos de comportamentos: se está com adultos, pede licença para sair da mesa antes dos adultos; se está com os seus pares, quem acabar primeiro é quem corre ao televisor para continuar a ver o filme que tinha começado antes do almoço. Com cortesia, solicitam se podem: bem sabe a criança que os adultos não vão dizer não pois a seguir seria uma birra de todo tamanho que não deixaria comer calmos os adultos, criança irrequieta porque os seus nunca mais acabavam a conversa, a calma de uma comida, as histórias que a mesa eram contadas e que aos mais novos nada interessava, não entendiam e o filme era mais interessante que as histórias antigas. Excepto, é evidente, se estiverem a falar dos pequenos, deles próprios: eles mandavam calar os adultos e completavam o conto à sua maneira. Adultos, esses, que calavam e permitiam, em silêncio, ouvir os cumprimentos que os pequenos ofereciam-se a si próprios, fossem verdade ou mentira. Na boca de uma criança, aliás, nunca há mentiras: há, sim, a sua forma de ver os factos e a sua interpretação dos mesmos; interpretação que o adulto deve entender sem acrescentar ou interpretar a realidade exposta pelos mais novos. Seria uma grave interpretação do que é educar e dar carinho. O adulto imita a vida enquanto é pai e mãe, aceitam o ideário dos pequenos e nunca dizem que não é verdade o que eles referem, fatos que vão mudando e com o tempo das crianças a crescerem. A doçura dos progenitores é mais uma aceitação das crianças e uma prova de amor e de estima, de emotividade e de orientar a sua vida pelas carícias das palavras e da segurança a dar aos petizes, confiança em si próprios, sem jamais puni-los. Se houver uma birra, dá-se ao mais novo um olhar para outro lado, ou com uma carícia, ou a ignorar a birra até esta passar. A criança imita à vida que os seus adultos emitem com o seu próprio comportamento. Como esse dia do voo de volta ao seu país de origem, imensas horas retidos no aeroporto ao mudar de avião e ter perdido a combinação. Os adultos, impacientes, debatiam um com o outro, perdido o imaginário de brincar aos aviões, de cantar aos bonecos, de se contarem histórias e de lembrar a praia, sumidos nas preocupações de horário e outros assuntos. Tomas e Maira disseram aos seus pais: as pessoas não se zangam, dão a mão e passeiam, é o que vós nos tendes ensinado. E os pais acalmaram e, como bons seres humanos que são, riam e brincavam com eles. As horas de espera passaram, assim, como uma incidente divertido que apenas a eles cabia entender com imaginação: Tomás imitava a musculatura e força do pai e Maira Rose alimentava a mãe com comida imaginada nas horas e espera do avião. Os adultos riam, como eu próprio, ao saber da história ao telefone, que me levou a escrever estas palavras como mais um texto de etnopsicologia das crianças.

 


A vida é imitação do real, se houver boa vontade do adulto para a criança. Esta aprende a ser feliz ao ser tratada com uma certa distância e nunca criticada pelas macaquices do seu comportamento. Imitação à vida é a reprodução do amor que os adultos têm entre eles e, por extensão, aos mais novos. Como acontece comigo, os meus filhos e os meus netos.

 


Porque ensaio de etnopsicologia da infância para palavras triviais? Ou as histórias não são reais, ou não têm importância? A metodologia de etnopsicologia da infância, que aprendida com o meu colega do Collège de France, Georges Devereux que procurou a teoria da psicanálise entre a etnia Mohave dos Estados Unidos. No seu ver, a teoria era de grande profundidade. Tinha ido por um ano, mas ficou três. Queria demonstrar o que escrevo no meu livro O saber das crianças e a psicanálise da sua sexualidade, retirando desse meu texto, o que comento a seguir, livro editado por Carlos Loures em 2011, no seu as viagens da Anaconda, http://aviagemdosargonautas.blogs.sapo.pt/334002.html , capitulo 4 do 13 de outubro de 2011. Para aquilo que não é mito, que vai além do mito, encontramos em Freud o complexo de castração, mola mestre do sujeito na psicanálise, eixo estrutural do sujeito dividido. Complexo que Georges Devereux quis provar não ser universal, e, já antropólogo, foi estudar entre a etnia Mohave dos Estados Unidos de América. Ele próprio, queria provar se a teoria de Freud era ou não universal e analisou a teoria psicanalítica dos Mohave, que soube explicar, após um prolongado trabalho de campo, em vários textos escritos em língua húngara, traduzidos para francês.

 

 

 

A castração marca a interdição, é da ordem do sacrifício. Tendo como contexto a via do mito da horda primeva naquilo que viabiliza a estrutura, como é o caso desse texto, nota-se que o facto dos filhos não puderem aceder às mulheres num primeiro momento hipotético não indica, necessariamente, que eles seriam, dali por diante, castrados, apesar de a lei já circular. Com o assassinato do pai fizeram um acordo, uma hipotética ordem social, um funcionamento viável ao instituir os dois tabus, donde se deduz o que deve ter passado pela subjetividade, cada um pôde assim renunciar e consentir em perda, submetendo-se à interdição.

 

 

 

Aqui encontramos a função do pai como agente da castração, o pai não é o castrador é antes o agente da castração, tendo a castração como enunciado de uma interdição. A função do pai na vida social é complexa. As análises dos autores citados e as dos seus comentaristas definem um papel de ser humano legislador. Perguntar-me-ia com Cyrulnik a quem pertence a criança, ao pai ou à mãe, ou aos dois? Com todas estas definições para entrar na mente cultural e nos secretos que as crianças guardam, frase retirada do título de um dos textos de Freud, como é possível amar?

 

 

 

Na minha própria análise, lembro-me de ter admirado o meu Senhor Pai sempre como um exemplo, com imensas virtudes e ensino pragmático sobre a vida. Nunca falou comigo de amores ou paixões, deixou a temática para a nossa Senhora Mãe, como narro noutros livros. Recordo-me perfeitamente que o nosso Senhor Pai, por capricho pessoal, pretendia que eu desse o melhor de mim em saber, em perspicácia, uma exibição tipo macaco do filho que ele amava e que não queria castrar. Soubesse ele ou não, que com a sua atitude, impingia na criança, uma imensa timidez e uma obediência cega. Ensinou-me música, ao ouvirmos juntos discos gravados de autores clássicos e barrocos. Lembro-me ainda, de ter aprendido a ler no seu colo, enquanto ele lia os seus livros eu ouvia o concerto para violino em Ré de Tchaikovsky aos meus 4 anos. Esta era uma imitação à vida, quer na minha história pessoal, quer na dos Mohave. Freud já não era vivo para defender a sua teoria, escrita por Devereux em 1977 e por mim, e 2011. O complexo de castração teria ido a vida, se vários de nós não tivermos feito trabalho de campo e etnias onde a criança defendia os seus direitos, com a sua teimosia de ser menino só e que impunha-se nos seus pais, co as birras analisadas ates. Apenas que essa castração era mitológica e passava mal se entrava na idade da puberdade e aprendia-se a fazer amor com as raparigas dos sonhos das crianças modernas.

 


À imitação a vida acaba e entrava-se na idade da vida, acaba e entrava-se na idade da reprodução y do prazer erótico nos namoros reprodutivos ou para satisfazer uma libido que ninguém contestou como teoria, mas sim foi aceite como parte da vida natural e normal, como acontecia com os Mohave de Devereux e os Picunche das minas análises. O comportamento ao contrário, seria estranho. Nos meus tempos de puberdade, lá vão anos, havia mulheres para casar e outros para penetrar. Hoje em dia essa diferença acabou e o namoro começa na cama, e pode ou não acabar em acasalamento. Estranho seria hoje se a castidade fosse a lei, quer com sexos diferentes o do mesmo sexo, facto que acontecia antigamente, mas era oculto. Hoje, é aberto e puxante, ninguém critica o que é natural: deixar-se guiar pela libido. A vida não se imita, realiza-se, acontece. Não se imita, materializa-se ou de forma heterossexual ou dentro do mesmo sexo ou, ainda, das duas maneiras, esse agir da bissexualidade, permitido hoje após Devereux e os Mohave e as minhas análises dos Picunche ou dos Baruya de Maurice Godelier, na Nove Guiné. Ou entre pessoas amigas do mesmo sexo, no nosso continente e país como tenho estudado do norte ao sul da nossa nação, especialmente na Madeira.

 


Suficiente, quem queira saber mais ou lê os Mohave ou meus livros e ensaios sobre a liberdade de amar. A vida não se imita, materializa-se ou por amor ou por erotismo que acalma a adrenalina manipulada pela libido e a tiroides. A primeira, é ativa. A segunda, faz da pessoa um sujeito passivo, calmo e sereno.

 

O livro pode ler-se na Viagem dos Argonautas ou o repositório do ISCTE-IUL ou no internacional, http://www.rcaap.pt

 

Ou diretamente da Net: http://br.monografias.com/trabalhos-pdf/saber-criancas-psicanalise-sexualidade/saber-criancas-psicanalise-sexualidade.shtml

 

Ou em http://biblioteca.iscte.pt/bibliopac.htm

 

Tenha paciência, paro neste linha! A vida não se imita, veve-se!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

*Retirado dos meus livros de notas de trabalho de campo e do meu livro citado no argumento central do meu livro O saber das crianças e a psicanálise da sua sexualidade

 

Parede, 5 de Junho de 2007 a história real

 

Parede, 14 Dezembro de 2011, à imitação.

 

Revisto a 16 de Outubro de 2003

 

http://www.youtube.com/watch?v=Jrz3cYgzH00&feature=endscreen&N

 

Beethoven, Missa Solemnis, D Dur

 

 

 

Código do vídeo

 

<iframe width="560" height="315" src="http://www.youtube.com/embed/Jrz3cYgzH00" frameborder="0" allowfullscreen></iframe>

 

 

 

 

 

A EPISTEMOLOGIA DA INFÂNCIA ENSAIO DE ANTROPOLOGIA DA EDUCAÇÃO- IIª Parte

 

2ª Parte

 

 

4. A infância.

 

Manuela Ferreira queria que eu falasse sobre a epistemologia infantil. Mas, Manuela Ferreira, excelente analista da infância, permita-me dizer-lhe, como antiga discípula minha, mais uma palavra do que me correspondeu ensinar dentro da miríada de ideias recebidas dos meus amigos e colegas no debate Stoer , Cortesão, Lencastre, Martinez, e outros, que, por excelentes, nem posso a todos nomear. Permita-me Manuela Ferreira dizer que a infância recebe a sua epistemologia conforme a cultura na qual vive. E que, para nós e por enquanto, está baseada num texto que, normalmente, um investigador descura, esquece, dá a volta ao que já sabe. O Código de Direito Canónico, no seu Cânon 97 define: “É maior a pessoa que completou dezoito anos de idade; antes de essa idade é menor. O menor, antes de completar sete anos, chama-se infante e considera-se que não tem uso de razão; completados os sete anos, presume-se que o tem”1 Estas normas estão vincadas no Catecismo, a base do saber da infância do Ocidente Romano, que abrange Portugal, Espanha, Itália, Irlanda, França e o Sul da Alemanha. O resto da Alemanha e vários outros grupos em países reformados por Calvino em 1523 e 1579, Lutero em 1520, Isabel I de Inglaterra em 1587, e outros que, denominados protestantes, no entanto, guardam as formas de ensinar aos mais novos. Diria, talvez, que com mais assiduidade e cuidado e respeito pelo indivíduo e pelo texto que a criança deve aprender na sua Escola Dominical.

 

Não apenas, os países não Romanos, estudam a vida a partir de Bíblia dentro das escolas às que assistem. Não há escola Britânica, Alemã, Suíça, Neerlandesa ou Holandesa como são denominadas as Repúblicas Unidas das Terra Baixar –Neerderland-, que não inculquem saber bíblico na regulação do comportamento. Citar Weber parece antigo e, no entanto, na versão de Anthony Giddens e nos seus comentários, é possível ver que a denominada ética protestante passou a ser parte da base do capitalismo pela austeridade de vida que as pessoas levam: sem luxo, a trabalhar sem descanso, excepto aos Domingos, desde a manhã cedo até às horas de dormir, também pronto ao cair da noite, para descansar o corpo destinado a criar. Porém a epistemologia da infância está baseada no capitalismo. Esse outro livro descurado por nós, O Catecismo da Igreja Católica de 1991, diz de forma clara no seu artigo 2407: “Em matéria económica, o respeito da dignidade humana exige a prática da temperança para moderar o apego aos bens de este mundo; da virtude da justiça, para acautelar os direitos do próximo e dar-lhe o que é devido: e da solidariedade, segundo a regra de ouro e conforme a liberalidade do Senhor “que sendo rico Se fez pobre , para nos enriquecer com a sua pobreza” ”2 Acrescenta este texto no Artigo 2403: “O direito de propriedade privada adquirida pelo trabalho ou recebido de outrem por herança ou dádiva, não vem a abolir a doação original da Terra ao conjunto da Humanidade....”, bem como diz no Artigo 2425: “ A Igreja rejeitou as ideologias totalitárias e ateias, associadas nos tempos modernos ao comunismo e ao socialismo. Por outro lado, recusou, na prática do capitalismo, o individualismo e o primado absoluto da lei do mercado sobre o trabalho humano...”3. Estas ideias não são apenas ensinadas, bem como praticadas na vida social dos seres humanos que aderem a Igreja Romana, apesar que, como instituição, tenha acrescentado todo um capítulo sobre a possibilidade de errar e ser perdoado. Por outras palavras, a infância cresce dentro da epistemologia do Capitulo Segundo, páginas 319 a 340: um ser humano capaz de, conforme o Artigo 4:“Aqueles que se aproximam do Sacramento da Penitência obtêm da misericórdia de Deus o perdão da ofensa a Ele feita e, ao mesmo tempo, reconciliam-se com a Igreja, que tinham ferido com o seu pecado, a qual, pela caridade, exemplo e oração, trabalha pela sua conversação.”4 Por outras palavras, o conceito de pecado, do bem e ou do mal, passam a ser centrais na mentalidade da criança desde muito cedo, quer no lar, quer na catequese, quer ainda na interacção com os seus pares. O conceito de pecado é central. E, um dos pecados, é a preguiça ou não trabalhar definido como tal, no Artigo 1866, ao qual denomina vício.

 

Ora bem, este texto aceita a propriedade como a ordem natural da vida ou direito natural e o trabalho, o objetivo da criação do ser humano. No seu livro já invocado, o Presbítero da Igreja Presbiteriana Escocesa Adam Smith em 1776, define no Capítulo I que o ser humano tem a inclinação a trabalhar5e a partir de essa ideia define que o limite do trabalho é a capacidade do mercado de absorver, com a mão invisível que regula a procura e a demanda, os bens criados por causa da divisão do trabalho.6 Em consequência, acaba por existir uma base cultural para agir de forma epistemológica para a infância, baseada na combinação da crença do sentimento de fé e da sua vergonha de não trabalhar ou de estar “sem trabalho”. Sabemos que Adam Smith é o criador, na base dos textos, ensino e conversas com o francês François Quesnay7, fundador do partido da Fisiocracia para salvar a aristocracia e monarquia francesas Católicas do Século XVIII, da teoria liberal da Economia ou relação social que significa, conforme Aristóteles8, a colaboração do lar na produção e consumo de bens. Não é também por acaso que Durkheim, como foi invocado no começo, tenha baseado a sua tese na ideia de divisão social do trabalho que, como ele diz, “todos conhecem mas foi Adam Smith o primeiro em a sistematizar e elabora a sua teoria dos grupos sociais que trabalham e o direito que governa estas relações individuais e entre grupos”9, frase derivada da ideia de Smith e da pesquisa estatística do autor francês, com observação participante da indústria francesa. Até Durkheim conhecer a obra de Marx em 1898 e aderir à lógica analítica do materialismo histórico10 para assim ter uma base objetiva, externa, como base para criar a sua Sociologia, não ortodoxa, (que Giddens, Goody e Bourdieu souberam desenvolver sobre as mesmas bases), Especialmente, no caso de Durkheim, na sua agnóstica análise da religião do seu texto Les formes élémentaires de la vie religieuse, já citado, e o corolário que ficou nas conclusões de Marcel Mauss no seu denominado Ensaio sobre a Dádiva, quando diz que todo o tempo presente é uma fábula, porque o interesse económico está sempre envolvido nas relações sociais11.

 

5. Conclusão.

 

Tinha já advertido no começo deste ensaio, que o repto não era simples. Pelo menos, para mim. Dediquei todo um texto para debater que a economia deriva da religião e provar que a epistemologia da infância advém dessa teoria. Um texto que espera ver a luz do dia em breve. De facto, o grave problema de nós, cientistas, é ignorar os textos básicos da nossa cultura. Hoje em dia sabemos, e com muita dor, que há seres humanos que orientam as suas vidas tal e qual nós fizemos em Séculos passados. O texto Alcorão orienta a vida de milhares de seres, dentro e fora dos seus países e têm toda a razão de nos designar infiéis. Não por não sermos muçulmanos, bem como por orientar a nossa vida pela mais-valia e o lucro e não pelos princípios éticos que tingem a nossa existência.

 

Esses textos são ensinados, de forma oral e escrita, às nossas crianças, no meio de um sistema ou processo cultural cuja base é maximizar recursos raros e caros, para podermos viver de forma condigna. É a base da epistemologia da infância. Optar, o segredo desse agir. A nossa vida mede-se pela opção entre o investimento lucrativo e o investimento que leva à falência, conceitos que substituem ao bem e ao mal. Para podermos entender esses conceitos, fazemos da criança uma entidade subordinada ao adulto, que lhe faz dizer que tudo sabe e tudo decide. Criança que cresce com essa ideia até reparar que o seu adulto se engana tanto como ele. É o caso que quis ilustrar com a vida de dois ditadores. Infelizmente, há mais ditadores que não apenas esses dois. E há imensas crianças que estão a olhar, a bisbilhotar o que acontece na interação adulta para saber o que não fazer para não errar. Diria eu, eis a base da epistemologia da infância. Substantivada para mim com os meus 20 anos de trabalho de campo a observar os pequenos e os seus adultos, e a sua interação. Vinte, dos 35 participantes que tenho observado com a metodologia de observação, que inclui viver e morar com eles e os seus adultos e usar a etnopsicologia criada por Bourdieu, Devereux e eu próprio no Collége de France, bem como o recentemente aparecido etólogo Boris Cyrulnik, quem nos ensinara a usar o conceito de resiliência recentemente. Uso a mina idade de cientista que me tem permitido observar que esses pequenos com os quais vivi na sua infância, passam a ser adultos que, ou optam para maximizar, ou vão à falência económica, donde, ética, como lembra Weber citando Lutero12. A prova fica na minha tetralogia da infância, à qual acrescentei mais um livro que deve aparecer em breve. A tetralogia fica para trás e a análise progride enquanto tenciono organizar essa maravilha para mim, que é a Antropologia da Educação. Uma lógica analítica que descrevo com cuidado em um dos meus livros13.

 

A criança nasce já sabida, como hoje-em dia está provado. Não é um indivíduo, é a síntese de ancestrais, assim como mais tarde será, também, dos seus descendentes. Como analiso num outro texto meu que muito amo.14 Não tem é, palavras, para explicitar o que entende à sua medida, em pequeno, mas sabe aplicar primeiro nas suas brincadeiras e, em breve hoje em dia, no trabalho devido ao seu lar para poder, ou ser capaz de, melhorar a sua economia, a economia tal e qual a definira Aristóteles: o trabalho em conjunto de todos os membros do lar, de cada um conforme a sua possibilidade, para cada um conforme a sua necessidade. A única idade socialista da vida de um ser humano, sua época de criança, tal e qual tenho relatado em outros textos e Manuela Ferreira tem analisado nos dela e nos preciosos comentários que faz aos meus, à laia de recensão. Como faço eu para ela, à laia de ensaio que, com todo prazer, escrevo, ao ritmo de Bach.

 

6. Bibliografia.

 

Aquino, Tomás de (1267-1273) 1998: Suma Teológica, Editorial, BAC, Madrid.

 

Aristóteles, (384-383) 1988: Metafísica, Editorial Gredos, Madrid.

 

(323) 1992: Étique à Nicomaque, Presses Pocket, Paris

 

(323) 1968 : Économique, Les belles lettres, Paris.

 

(322 A.C.) 1994: Categorias, Guimarães, Lisboa.

 

Abur Nasser al-Fârâbi ou Avenassar, (959) 1964: La politique e Livre de la communité religieuse, editados em Beirute, Fauzi Najjar, Líbano.

 

Bourdieu, Pierre, 1964: Les Héritiers, Minuit, Paris. ( com Jean-Claude Passeron)

 

1968 : La reproduction, Minuit, Paris, ( com Jean-Claude Passeron)

 

1988 : Homo Academicus, Minuit, Paris.

 

La Noblesse d’État, Minuit, Paris ( com Monique de saint Martin)

 

1993: Discurso de agradecimento pela entrega da Medalha de Ouro do CNRS, in Educação, Sociedade e Culturas, Nº2, 1994.

 

1993: La misère du monde, Seuil, Paris ( com varios autores)

 

Bonvin, François, 1990 : Le soutient à l’enfant : les cycles d’animation périscolaire, Fondation pour la recherche sociale, Paris.

 

Catecismo da Igreja Católica, 1991, Gráfica de Coimbra.

 

Código de Direito Canónico, 1981, Braga Editora.

 

Descartes, René (1637) : Discours sur la méthode, versão portuguesa de 1986, Porto Editora.

 

(1641):Meditations, versão portuguesa de 1998, Guimarães Editora, Lisboa.

 

Durkheim, Émile, (1893) 1977 : A divisão social do trabalho, Dois Volumes, Presença, Lisboa.

 

Essais dur la conception matérialiste de l’Histoire » in Revue de Philosophie, Décembre 1898

 

1912: Les structures élémentaires de la vie religieuse, Félix Alcan, Paris.

 

Ferreira, Manuela, « Recensão de O imaginário das crianças de Raúl Iturra, in Educação, Sociedade e Culturas N. 2, 1994.

 

Feürebach, Ludwig, (1841) 1994: A essência do cristianismo, Gulbenkian, Lisboa.

 

Giddens, Anthony, 1989: Sociology, Polity Press, Cambridge, Grá- Bretanha.

 

Gomes da Silva, José Carlos, 1989: L’Identitévolée. Essais d’Anthropologie Sociale, Bruxelles, Belgique.

 

Hegel, Friederick, (1807) 1998: Fenomenologia do espírito, Vozes, Petrópolis.

 

Hume, David, (1748) 1984: Del conocimiento, Sarpe, Madrid.

 

Iturra, Raúl, 1990: A construção social do insucesso escolar. Memória e aprendizagem em Vila Ruiva, Escher, Lisboa.

 

1992: “La representación ritual de la memoria oral en el trabajo de la tierra” in González Alcantud y González de Molina: La tierra. Mitos, ritos y realidades, Anthropos, Barcelona.

 

1997: O imaginário das crianças. Os silêncios da Cultura oral, Fim de Século, Lisboa.

 

1998: Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças, Profedições, Porto.

 

2000: O saber sexual da infância. Desejo-te, porque te amo. Afrontamento, Porto.

 

Marx, Karl, (1857-58) (1930) 1873: Grundrisseou Foundations of the critique of political economy, Penguin, Grã -Bretanha.

 

Mauss Marcel, 1924: « Essai sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques », in L’Année Sociologique, Nouvelle Série, Vol. I, Félix Alcan, Paris.

 

Klein, Mélanie, 1952 : «As origens da transferência » in Inveja e gratidão e outros trabalhos, 1946-1963. Vol. III das Obras Completas da Mélanie Klein, Imagos, Brasil.

 

Miller, Alice, (1980) 1983: For your own good. The roots of violence in child-rearing, Virago, Grã- Bretanha.

 

Occam, William of, (1335) 1985: Opera politica, Serpa, Madrid.

 

Quesnay, François, (1756) 1888 : Métayer ; (1757) 1888 Les Moisons; (1758) 1888 : Le Tableau Economique in Ouvres de Quesnay, Oncken, Paris.

 

Smith, Adam, (1776) 1874: An inquiry into the reasons and causes of the wealth of nations, Rutledge, Londres,

 

Spinoza, Baruch, (1670) 1992) :Ética, Relógio d’água, Lisboa.

 

Stuart Mill, John, (1859) 1962: On liberty, Collins, Grã- Bretanha.

 

Weber, Max: (1904) 1998: La ética protestante y el espíritu del capitalismo, Taurus, Madrid

 

(1915.1918) 1998: Las religiones del mundo. Taurus, Madrid.

 

1922: Economía y Sociedad, FCE, México.

 

 

 

Raúl Iturra

 

lautaro@mail.telepac.pt

 

Parede, 16 de Outubro de 2001

 

Paris, 24 de Janeiro de 2002

 

Reescrito para publicação em formato de papel:

 

Parede, 29 de Outubro de 2013

 

1 Código de Direito canónico, publicado pela primeira vez em 1911 e reformulado em 1981 por João Paulo II. O Direito Canónico Governa as relações humanas desde o Século III e foi incorporado ao Código de Justiniano em 513 e legislado como lei da Igreja Romana –definida no Cânon 1 da versão atual do Código- pelo Bispo Graciano de Roma, no Século IX da nossa era. Foi a base para o Código Napoleónico que nos Governa como. Código Civil desde 1864 em Portugal. Porém, as idades da responsabilidade são as mesmas, tendo o Direito Canónico atual adotado as reformas do Código Civil de cada País onde existe múnus ou poder da Igreja Romana

 

2 Catecismo da Igreja Católica de 1991, Artigo 2407, página 508, Gráfica de Coimbra Limitada.

 

3 Catecismo citado, páginas507 a 515, dentro do qual recusa as greves.

 

4 Catecismo citado, página 317.

 

5 Smith, Adam, obra citada, páginas 3 a 10 da versão inglesa original.

 

6 Smith, Adam, obra citada, Capítulo III, páginas 10 a 15. Há versão portuguesa editada pela Gulbenkian.,

 

7 Quesnay, François, (1756) 1888: Métayer; (1758) 1888 Tableau Economique ; Les Moisons, (1757) 1888 in Œuvres de Quesnay, Oncken, Paris.

 

8 Aristóteles, (c323) 1968, Économique, Les Belles Lettres, Paris.

 

9 Durkheim, Émile,1893 : De la division du travail social, Felix Alcan, Paris, Capítulo Primeiro da versão portuguesa, Editorial Presença, Lisboa, página69 e ss.

 

10 Durkheim, Émile : “Essais sur la conception matérialiste de l’histoire » in Revue Philosophique, Décembre 1898. Aliás, até 1902, L’Année Sociologique esteve dedicado analisar a obra de Marx. Não é em vão que Giddens comenta no seuSociology, Polity Press, Cambridge, 1989, página 466: “With the development of modern societies, Durkheim believes, the influence or religions wanes. Scientifically thinking increasingly replaces religious explanation…Durkheim agrees with Marx that traditional religion is dead «the old gods are dead, says Durkheim»”

 

11 Mauss, Marcel, 1924: Essai sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïque, versão portuguesa d’Edições 70, páginas 192 e seguintes.

 

12 Weber, Max, (1904) 1998: La ética protestante y el espíritu del capitalismo, Taurus, Madrid; (1915-1919) 1998: La ética de las religiones del mundo, Taurus, Madrid; (1922) 1993 Economía e sociedad, F.C.E, México.

 

13 Iturra, Raúl, 2000: O saber sexual da Infância. Desejo-te, porque te amo. Afrontamento, Porto.

 

14 Iturra, Raúl, 1998: Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças, Profedições, Porto.

 

A epistemologia da infância Ensaio de Antropologia da Educação

 

  Para o meu colega de tantas jornadas de debate e formação de investigadores, trabalho que fez de nós amigos, Pierre Bourdieu.*

 

 

 

1.Introdução.

 

 

 

No seu conjunto, falar de epistemologia da infância acaba por ser um problema duplo. O problema da epistemologia como conceito que tenciona definir ou explicar a lógica das relações sociais; e o da infância, como processo de relações sociais de épocas conjunturais da vida de um ser humano em qualquer grupo social, de qualquer cultura, de qualquer hierarquia, de qualquer classe social. Não é por acaso que o desafio me é lançado. Já em 1997, bem antes de ter continuado a estudar crianças, Manuela Ferreira disse “...este livro...permite desenvolver novas ideias no âmbito da sociologia, considerando o posicionamento social das crianças, das infâncias vividas, em particular as características experienciadas e socialmente construídas, por forma a reflectir acerca das crianças como grupo social, com é que elas se adequar ao debate sociológico e que contributos são que este grupo traz para esse debate”1 Manuela Ferreira fez uma profunda análise de um texto meu e a seguir, lançou um repto para continuarmos a falar da epistemologia. Não de uma qualquer, mas da infância. Raio de debate, no qual é necessário ou retirar autores, ou escrever um tratado com a limitação de vinte páginas.

 

 

 

 

2. A epistemologia.

 

 

 

Conceito que se tem debatido, até à fadiga, ao longo do tempo, porque diz respeito à origem do saber. A questão é colocada já por Tomás de Aquino nos seus comentários sobre a Metafísica de Aristóteles. No seu texto Summa Theologica, na questão 85 do Livro I, debate que o saber existe não apenas porque os seres partilham um mesmo atributo, bem como porque são de uma mesma categoria de espécie. Que Juan y Pedro tengan la misma calidad de ser hombres, es apenas una universalidad mental, no una realidad que exista fuera de la mente. Porque fuera de la mente hay categorías de especies que no constituyen universalidad bien como hay especies que comparten formas sustantivas de ser”2. O problema é que Tomás de Aquino, na sua interpretação dos textos Metafísica y Categorias3 de Aristóteles, fala das ideias inatas ou existentes em nós ao nascermos por sermos entidade lógicas que procuramos o antecedente e o consequente de uma realidade que é evidente dentro da sua categoria. Seres que entendemos e procuramos a lógica do antecedente e do consequente ou o denominado silogismo. Quando Aquino diz no texto citado “Juan es hombre, Pedro es hombre”, refere uma universalidade de factos entre os dois que faria deles uma universalidade se não houvesse categorias de factos, às quais pertencem os antecedentes dentro da sua categoria ou espécie às quais pertencem as mesmas formas de ser ou naturezas. Para Aquino, que influenciou a forma de pensar a partir do Século XIII até aos nossos dias pela teoria denominada Escolástica, o saber ou a epistemologia faz parte da natureza natural do ser humano, capaz de entender e distinguir em forma ordenada, a partir das constatações externas e da forma argumentativa de provar a partir da denominada substancia ou especificidade do facto, que delimita a sua origem, sua espécie e o seu destino. Aquino não faz “barulho” com as formas de saber, de aprender, ou espistemologia. Estudioso, tinha uma base muito determinada para pensar: acreditava na existência de uma divindade que era a origem de tudo. No entanto, na altura da sua existência, á divindade começava a não ser suficiente para explicar todas as lógicas, ou da razão. Passou a ser necessário, pelo desenvolvimento do saber Escolástico, a prova da hipótese. Exprimir o que estava em frente a nós, largando para outro sítio tudo o que for prova da divindade. O pensamento da civilização Ocidental, como também da Oriental4, entrou pela filosofia com mais calma que Descartes5, Spinoza6, Hume7, Stewart Mill8, Hegel, 9 Feürebach10, Marx11. Talvez, da forma calma e serena usada por Durkheim12, Mauss13 e Weber14. Simples e directo. Quase como uma criança. Não tinha que provar nada, a verdade dava-se por adquirida e governava o mundo dentro do qual o resto dos autores citados, tiveram que irromper e debater para entender a realidade sem ter que passar pela divindade. De Descartes a Hegel, há duas formas de entender o real: a primeira, é liderada por Descartes e diz que a única certeza que existe é a dúvida metódica para entender o real, existirem ideias inatas nos seres humanos. A partir de Hume, a realidade era a prova da existência empírica dos factos. Divididas também as ideias entre os idealistas hegelianos e os materialistas ou historicistas, que procuram o contexto do desenvolvimento humano para entender a vida. Sabemos bem que é a partir de Feürebach e Stewart Mill, que a lógica muda para a procura da verdade, até chegarmos aos que procuram os factos na interacção social e as formas de acreditar simbólicas sobre a vida e a matéria, como é o caso dos três autores citados na cumprida lista já referida: os fundadores da Ciência Social, seja Sociologia, Antropologia, Economia, outras. As provas já não são filosóficas: a partir do pensamento de Marx, Durkheim e Weber e Mauss, experimentam ligar os valores económicos do mercado, tal e qual foram definidos por Adam Smith15. Esse Smith que foi a base da tese de doutoramento de Émile Durkheim16.

 

 

 

Em consequência, falar em epistemologia passa por um debate de centenas de anos, até chegarmos às formas actuais, denominadas positivas ou de lógica do inquérito ou da observação, para sermos capazes de compreender as formas de entender a tensão da lógica da criança e a omnipotente sabedoria que o adulto pretende ter sobre esse saber infantil. De forma causal ou contraditora e, no caso das crianças, um trabalho delicado.

 

Porque não há grupo social que não tenha uma interacção entre os adultos do grupo e as novas gerações que começam a aparecer. Normalmente, é dito que a transferência do saber é feita de forma institucional através da escola. De facto, a partir dos textos de Pierre Bourdieu, o sistema de ensino parece passar a ser o centro da análise para entender a epistemologia da criança17. Pierre Bourdieu desloca o entendimento da criança, para as genealogias e o já referido sistema de ensino Este tipo da análise leva ao investigador a inquirir o processo educativo tal e qual é feito na escola. No entanto, parece-me, como temos já debatido com o autor, que o saber da criança passa pela sua forma de interagir com o mundo. Do conjunto de observadores e investigadores do Laboratório que tem dirigido até o dia de ontem, apenas um dos membros tem estudado meninos para entender a sua forma de perceber. De facto, François Bonvin escreve em 1990: “Quels sont les enjeux pour ces catégories de familles et d’enfants ? Qu’ont –elles à perdre de spécifique à l’échec scolaire et qu’ont-elles à demander à une institution de secours ? »18 O problema que Bonvin quer desvendar, é a análise feita pelos filhos de emigrantes que vivem na França. Análise de uma segunda geração de seres humanos que têm saído da sua terra para morar em uma cultura alheia, cuja língua desconhecem e cujos símbolos não são de identidade, quer para os mais novos, quer para as suas autoridades. A análise do conceito espistemologia passa a ser mais complexa, por causa do que se poderia dizer “uma identidade roubada19. Como analisa Gomes da Silva, os símbolos e hierarquias passam a ser outros, os dos ancestrais que não têm cabimento numa outra cultura; parece ser uma recusa de si próprio bem como uma recusa do outro, que é um estranho para quem passa a viver em país alheio. É a análise que faz Bonvin ao estudar crianças de origem africana a morar na cidade de Paris.

 

A transferência de saberes e entendimentos é parte central do conceito em análise. Esses saberes são apenas passíveis de serem transmitidos dentro do meio para o qual os factos e as palavras, os símbolos e as hierarquias, foram emergindo da memória social colectiva. Se não há uma materialidade que corresponda com os símbolos que moram na consciência e no inconsciente da criança, esses saberes acabam por ser apenas uma metáfora que divide o entendimento, até uma parte dominar a outra. Tal como analisa Melanie Klein nos seus textos: “Transferência opera ao longo da vida e influencia todas as relações humanas.até as ansiedades de natureza persecutória...e incitam o medo de retaliação”20 Klein está a analisar a transferência do paciente para o analista, mas penso que é útil para entender a dificuldade que aparece na vida social vivida fora do lar ou da cultura da qual os símbolos e saberes são recolhidos. Porque todo e qualquer grupo social procura a sua continuidade, como tenho defendido em outros textos. Essa continuidade não quer a subordinação que a infância vive nos casos analisados por Bonvin, ou por mim, quando estudo crianças transferidas para outros países pela emigração dos seus pais, ou deixadas em casa, enquanto os pais moram em outros sítios21. É um tipo de impossível transferência de emotividade e conhecimento. Ou a transferência de conceitos julgados úteis para a criança porum adulto que sabe agir dentro de contextos diferentes aos daquelesemque agora está a viver. Acaba por ser uma memória social diferida, transposta, a pertencer a um outro sítio para o qual o saber original não é válido. Transferência que também não acontece quando as gerações que interagem têm referentes diferentes para retirar os seus conceitos e os seus símbolos bem como, muitas vezes, a língua na qual falam.

 

Há um caso que observei na Beira Alta, já quase há 20 anos e tenho relatado em outros textos22: uma família que estava a passar as suas férias na sua terra. Moravam na Alemanha durante o ano de trabalho, os pais a trabalhar, os filhos a estudar. Como é culturalmente natural, as crianças da família aprenderam mais facilmente a língua da terra na qual viviam: tinham amigos de rua, tinham colegas de escola, tinham outros adultos ao pé deles, tinham uma fonte mais heterogénea de informação, quer linguística, quer histórica, quer de contexto social. Os pais, presos pelo trabalho, estavam ligados aos seus pares para falarem do mesmo aspecto, só falando de trabalho. É importante perceber que a heterogeneidade da informação dá um entendimento maior da sociedade na qual se vive e que limita a visão ao futuro, quando fica enredada apenas em uma actividade. São as ideias debatidas com Pierre Boiurdieu e Henri Bonvin no seu Seminário de Paris e no nosso em Lisboa e no Porto.

 

Não é em vão que Alice Miller23 analisa a vida de várias pessoas que influenciaram o curso de história de uma ou doutra maneira. O caso mais delicado, é do Adolf Hitler, filho de um pai nascido de uma relação ilegítima, ou fora do matrimónio, da sua mãe com um comerciante judeu. A história é estudada e contada com uma certa latitude24, para concluir que o ódio pelos ancestrais e pelas suas condições de vida, permite desenvolver uma personalidade, um entendimento do real que, se há poder político pelo meio, a pessoa faz, cria uma epistemologia omnipotente, que experimenta mudar o mundo às formas, processos e estruturas do que é esperado pelo conjunto do social ou, como ela denomina, passar do horror escondido ao horror manifesto. Hitler, como criança, ouviu a história pessoal da sua família, e mais tarde vai criando uma história da sua vida que desenvolve no texto por todos conhecidos: Mein Kampf, no qual diz, “I had to some extent been able to keep my private opinions to myself; I did not always have to contradict him inmediatly. My own firm determination never to become a civil servant sufficed to give me complete inner peace”25 Esta citação de Miller é feita para entendermos como o contexto social vai criando uma maneira de ser, um pensamento de baixa auto estima e de desejo de mudar o mundo para a fantasia que ele próprio tece sobre a sua história de vida de futuro. É a luta de uma criança que não é brilhante nos seus estudos, tem poucos valores positivos como notas e é apático na interacção com os outros. Uma criança que sofre um duplo tipo de recalcamento dos seus sentimentos: o de ser marginal por ser filho de judeu, e o de ter nascido fora do laço do matrimónio. Este duplo recalcamento, endereça as suas ideias para o mundo, constrói uma fantasia social, perigosa e perversa.26 O debate com os seus pais é duro, especialmente com o pai, que é um adulto cruel com o seu filho, que descarrega nele a sua própria dor de não ser o fruto de uma família definida pelo contexto social no qual vivia. Esse pai tinha passado a ser um correcto ser social na interacção com os outros, mas era duro com o seu filho, batia e punia por tudo e por nada. “For many people it is very difficult to accept the sad truth that cruelty is usually inflicted upon the innocent. Don’t we learn as small children that all the cruelty shown us in our upbringing is a punishment for our wrongdoing?”27É o que acaba por ser o testamento para a aprendizagem do ditador, que acaba por descarregar a sua epistemologia apreendida na interacção familiar e dentro de um contexto social de desconfiança da política social comunista nascida nesses tempos, ou desenvolvida nesses tempos, e dos membros da raça semita, ou judeus, por serem um grupo social diferente das formas de comportamento da maior parte dos austríacos e prusianos do tempo em que se desenvolve a ideia de se ser uma raça superior, aristocrata, sem mistura, etc.

 

Tal e qual é desenvolvida a ideia do bem comum em um outro país, cujo ditador é também um membro do poder armado, de baixa auto estima pela sua origem social ser mestiça e não do sangue puro dos invasores vindos da Espanha, que acabam por guardar para eles as terras que pertenciam aos nativos: um ditador da América Latina, que nos anos 70 do Século XX assassina um Presidente democrata e eleito pela via legal e constitucional. Este ditador é um mestiço do território Picunche de Chanco, Talca, Chile, que acaba por reorganizar a trama social da estrutura da hierarquia de classes sociais para derrubar as famílias mais antigas e proprietárias de terra e industrias e transferir esse poder aos seus subordinados ou transferir para investidores que apoiavam com a sua economia, o poder político e, porém, as suas represálias sobre os que considerava opositores à verdade, definida pelo seu poder político e as ideias dos grupos sociais abastados e internacionais que o apoiavam e mantinham para ele e a sua família um tratamento preferencial que nunca esperou e nem conhecia, a seguir a uma vida de criança sem meios e pobre em recursos intelectuais como materiais.

 

Esta divagação, da história da família da Beira Alta para a vida de dois ditadores que mudaram a face da terra em grandes territórios geográficos e alinharam em ideias que mudaram o debate sobre a epistemologia, é apenas para poder entender que o que parece mais criminoso –os ditadores-, acontece também com o comum das pessoas. Na casa onde observei a relação entre adultos e crianças, o não reconhecimento da existência dos pais como educadores competentes, passava pelo facto de se usar uma língua bem falada pelos mais novos, enquanto os mais velhos tentavam manter a sua autoridade com pretensões de saberem mais e melhor do que os seus descendentes. Porém, epistemologia não é apenas um debate filosófico da origem inata, racional, empírica e dialéctica do saber dos conceitos e da realidade e os seus factos. É uma metáfora teórica de académicos que devem lembrar as formas e maneiras em que essa realidade é organizada e como é aprendida e transmitida entre gerações.

 

3. Origem do facto epistemológico.

 

Parece ser uma contradição falar de um conceito como um facto, mas é apenas aparente. Todo O debate sobre o nascimento do saber tem a ver com o desenvolvimento histórico da origem do saber social. A nossa civilização estava muito satisfeita, como Tomás de Aquino, de ter resolvido a origem de todo o ser e de todo o pensamento e pôde, como foi dito, falar calmamente do que pensa é ser essa origem da lógica. Mas, a seguir, e apesar dos cuidados existentes para manter durante séculos ao povo a pensar de uma só e mesma maneira, o desenvolvimento do pensamento humano vai orientando essa capacidade de pensar para a investigação dos acontecimentos. As Universidades que ensinavam Teologia, Direito Canónico e o Cristão e Romano Código de Justiniano, que governara ao mundo entre os Séculos VI e XIV e se estendera depois aos actuais Códigos Liberais de Direito Civil, ou Medicina, ou Filosofia, Artes e outras ciências, acumularam saberes que dinamizaram o pensamento dos que podiam ter o tempo para dedicar o seu trabalho aos livros. As Universidades de Cambridge e Oxford na Grã-Bretanha, desde 1125 a primeira e 1127 a segunda, a Sorbonne em Paris desde 1253, Salamanca na Espanha aos começos do século XIII, Peruggia e Firenze na Itália, Coimbra em Portugal, acumularam um saber que, muito mais tarde, passaram ao povo em forma de ensino das letras e os números. Se as universidades começam a especular e acumular provas da existência de outros saberes para grupos sociais de alta hierarquia, as escolas apenas começam a funcionar no Século XIX na Grã-Bretanha, como parte integrante da preparação para o desenvolvimento da Industria28. Este desenvolvimento fez dizer a Guilherme de Occam ou Ockam, em 1331: “O que nos fazemos é teologia, o que fazem os nossos irmãos leigos, vamos denominar ciência”29 Bem entendido, os grupos sociais e eruditos do Ocidente Cristão, tal e qual antes os Gregos e, desde o Século IX os Islâmicos, antes ainda os Budistas e outras ideias religiosas, estavam preocupadas pelo saber e o seu desenvolvimento, pela espistemologia30.

 

Mas, o problema da epistemologia, é bem mais simples que todo este debate que tenho indicado como existente – sem esquecer, de facto, os autores que têm analisado directamente os pensamentos sobre a Universidade e o seu desenvolvimento do saber. Gostava de usar uma forma lógica pragmática para dizer qual a base deste saber. Todo o ser humano nasce e vive e, enquanto vive, repara que há outros que crescem, mudam e vão desaparecendo ou morrem. A tese de todo o ser humano, é a sua vida, a sua antítese, é a sua morte, em consequência, cria. Cria uma ideia denominada alma ou espírito e um sistema de estruturas hierárquicas que começa pela divindade e continua pelo contexto dessa divindade. Não há cultura que eu saiba, que não tenha um sistema de símbolos para substituir a vida que, sabe desde que entende, um dia vai perder. Porém, cria duas entidades dentro de um só ser: o corpo e a alma. Durante Séculos, como os historiadores têm analisado, o cuidado da salvação da alma tem passado a ser o centro de toda actividade. Se a Inquisição existiu, bem como a própria evangelização de países conquistados ao longo dos Séculos, pelo Ocidente, foi para estender a parte fundamental da epistemologia cristã: a da salvação da alma. Era o problema que tinham os primeiros pensadores que criaram um sistema de pensamento baseado na descoberta e não na pesquisa: como coordenar a razão com a crença na vida a seguir à morte. Immanuel Kant tentou coordenar o seu sentimento de fé em uma outra vida com a sua lógica racional e escreveu todo um texto, que foi a base para Hegel ripostar e Feurebach materializar31 , como já foi invocado mais acima. Kant experimenta definir a fé histórica como a fé da Igreja, que ele desprecia como importante para o sentir e o saber. Para este autor, a religião é uma teoria globalizante do sentimento moral que intervém em toda a relação social. Donde, a epistemologia é um conjunto de símbolos que permite a comunicação entre os seres humanos. Uma lógica que permite a interacção. Um processo de conceitos que organizam os indivíduos em grupos diferentes, ou estratos, ou classes, um capital social, como diz Pierre Bourdieu32, ou uma reflexão a partir de um saber teórico e de uma observação participante do terreno que permite saber os efeitos da estrutura social sobre os agentes33. Ideia que os também já citados Marx, Durkheim e Weber, materialistas históricos na sua análise, vão utilizar para explanar a existência de grupos sociais. Durkheim é quem mais utiliza as ideias da solidariedade e do inconsciente social, cheio de símbolos dialécticos que permitem distinguir entre grupos e indivíduos. É esse o conceito de espistemologia que nós vamos herdar para entender a relação entre pessoas de diversa geração em convívio permanente. Entre os quais estão os mais novos que, por andar a aprender as formas de vida, precisaram primeiro, de entender a interacção emotiva para depois passar a compreender a lógica do discurso cultural. A criança tem uma lógica do pensamento que lhe permite observar o mundo do adulto, ainda que o não compreenda. Gradualmente, desenvolve uma consciência de não entender; é aí que essa epistemologia imaginária, mítica, da experiência, passa a ser um saber epistemológico adulto. Donde, a criança acaba por crescer.

 

Para o adulto, é um caos de ideias a lógica da criança. Para as crianças, uma tensão lógica que permite uma forma de pensar que, enquanto cresce, eventualmente passa a entender, racionalmente, a mente cultural34. Mente cultural, parte do saber social, que impinge o saber lógico dos conceitos ou epistemologia

élix Alcan, Paris.

 

13 Mauss, Marcel, 1923- 1924: « Essai sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques », in L’Année Sociologique, Nouvelle Série, Paris, Félix Alcan, Vol. I.

 

14 Weber, Marx, (1904) 1976: The protestant ethics and the spirit of capitalism, counterpoint, Londres

 

15 Smith, Adam (1776) 1874: An inquiry into the reasons and causes of the wealth of nations, Rutledge, Londres.

 

16 Durkheim, Émile, (1893) 1977: A divisão social do trabalho, dois volumes, Presença, Lisboa

 

17EspecialmenteLes héritiers, Minuit, Pris, 1964 e La reproduction, Minuit, Paris, 1970, os dois textos com a colaboração de Jean-Claude Passeron.

 

18 Bonvin, François, 1990 : Le soutien a l’enfant: les cycles d’animation périscolaire, Fondation pour la recherche sociale, Paris.

 

19 Gomes da Silva, José Carlos, 1989: L’Identité volée. Essais d’Anthropologie sociale, Éditions de l’Université de Bruxelles, Belgique.

 

20 Klein, Melanie, 1952: “As origens da transferência” in Inveja e gratidão e outros trabalhos 1946-1963, Vol. III das Obras Completas de Melanie Klein, Imago, Brasil, página 71 do Vol. citado.

 

21 Iturra, Raúl, 1998: Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças, Profedições, Porto.

 

22 Iturra, Raúl, 1990 b): A construção social do insucesso escolar. Memória e aprendizagem em Vila Ruiva, Escher, Lisboa

 

23 Miller, Alice, (1980) 1983: For your own good. The roots of violence in child-rearing, Virago, Reading, U.K.

 

24 Miller, obra citada, páginas 142-195

 

25 Citado por Alice Miller, página 158, da obra mencionada.

 

26 Analisado no nosso Seminário, especialmente com o Magister José Manuel Filipe.

 

27 Miller, obra citada, página 158

 

28 Para um entendimento do papel do saber universitário, ver, Bourdieu, Pierre, 1984: Homo Academicus, Minuit, Paris e La noblesse d’Etat, com Monique de Saint Martin, Minuit 1988. Para o caso Português há escritos de Rui Gracio, Filomena Mónica, Sérgio Gracio, Ana Benavente, Maria Eduarda do Cruçeiro, Steven Stoer, Luiza Cortesão, Helena Costa, António Firmino da Costa, Fernado Luís Machaddo, entre outros.

 

29 Ockam, Guilherme de ou William of, (1331) 1985: Opera politica, página 41, Serpa, Madrid

 

30 Congreso Al-Andaluz, Granada, 1991, varios autores: Saber, religión y poder político en el Islam, Agencia Española de cooperación internacional, Madrid. Amin Maalouf, (1983) 1984: As cruzadas vistas pelos Árabes, Difel,

Lisboa e (1998)1999: As identidades assassinas, Difel, Lisboa.

 

31 Kant, Immanuel, (1793) 1992: A religião nos limites da simples razão, Edições 70, Lisboa

 

32 Bourdieu, Pierre, La reproduction, op.cit ut supra.

 

33 Bourdieu, Pierre et al. 1993 : La misère du monde, Seuil, Paris, paginas 116-117 e 904. (a minha tradução)

 

34 Conceito elaborado por mim em 1990: A construção social do insucesso escolar. Memória e aprendizagem em Vila Ruiva, Escher, Lisboa. Na base dos contributos a este conceito de Luiza Cortesão e Stephan Stoerr, acabei por oe definir no nímero 1 da nossa Rrevista Educação, Sociedade e Culturas, em 1944.

 

35 Código de Direito canónico, publicado pela primeira vez em 1911 e reformulado em 1981 por João Paulo II. O Direito Canónico Governa as relações humanas desde o Século III e foi incorporado ao Código de Justiniano em 513 e legislado como lei da Igreja Romana –definida no Cânon 1 da versão actual do Código- pelo Bispo Graciano de Roma, no Século IX da nossa era. Foi a base para o Código Napoleonico que nos Governa como. Código Civil desde 1864 em Portugal. Porém, as idades da responsabilidade são as mesmas, tendo o Direito Canónico actual adoptado as reformas do Código Civil de cada País onde existe múnus ou poder da Igreja Romana

 

36 Catecismo da Igreja Católica de 1991, Artigo 2407, página 508, Gráfica de Coimbra Limitada.

 

37 Catecismo citado, páginas507 a 515, dentro do qual recusa as greves.

 

38 Catecismo citado, página 317.

 

39 Smith, Adam, obra citada, páginas 3 a 10 da versão inglesa original.