MEUS PAIS NÃO SÃO PESSOAS.
MEUS PAIS NÃO SÃO PESSOAS.
Ensaio de etnopsicologia da infância
Debate com Alexandre Silva, fruto dessa nossa conversa em tempos de orientação para o seu doutoramento… Nem sempre os adultos falam entre si das suas crianças. Quando falam fazem-no por causa duma instituição os requisitar durante o dia para avaliar o seu comportamento nos estudos, a sua conduta, o seu comportamento pessoal nas suas emoções e interacção com os outros, adultos ou crianças. Fala-se das crianças entre mãe-avó e filha-mãe, entre amigas, entre mães de crianças companheiras. E o tema da conversa é sempre o comentário de o que fazer para as educar. Para as apresentar melhor perante os outros, para entender melhor as capacidades de dinamizar a concorrência com o resto da miudagem, hoje tão importante para os habilitar para a vida. Ou, fala-se das crianças entre os pais, tentando entender melhor as suas ideias e os seus objectivos.
Para decifrar esse conceito pelo qual tanto teimo: a epistemologia das crianças, ainda que o conceito não seja conhecido ou usado entre pais, é suposta haver entendimento do que os filhos fazem e pensam, de aceitar esse entendimento, que eu denomino racionalidade infantil e que é diferente da dos adultos. Tenho observado, no meu trabalho de campo, o adulto falar do contexto no qual anda a criança, as suas amizades, os amigos, as brincadeiras diferentes consoante a hierarquia social; bem como conversas diferentes entre adultos segundo o seu estrato social, para não usar o conceito preferido por mim, classe social - conceito que hoje em dia até é difícil de aplicar: os indivíduos aparentam mudar de classe com uma certa facilidade, conforme a riqueza acumulada na teoria neoliberal que governa o nosso pensar. Uma racionalidade à procura da riqueza, definida como objectivo de vida já desde o tempo de Maquiavelo (1516) e de John Hales (1581). Quer um, quer o outro, andaram a defender a riqueza das pessoas como objectivo de vida, ou do estado para dar apoio ao povo pobre. Teorias renascentistas ainda assentes no nosso pensar social.
Sem entender, o casal de pais bi ou unisexual, as teses de autores que andam por trás do seu pensar sobre os seus filhos, e que determina a direção do apoio dado às crianças no sentido do que é entendido como sucesso: serem ricos, uma fantasia destemida que os pais, sem o saberem, andam incutir na descendência. Reflexo ideal da sua própria luta pelo poder, pelo dinheiro, pela poupança, pela falta domínio da leitura, do saber científico, pela fruição e mestria na arte e na música.
Tenho observado, enfim, que o discurso do adulto debruça-se sobre o comportamento dos filhos enquanto futuros cidadãos e não enquanto petizes a crescerem, amarem, sentirem, a procurarem o ideal de ser únicos para os seus adultos e únicos dentro de casa. Filhos, aliás, muito entregues à mãe. Como costumam as senhoras dizer: “eu os fiz, eu os crio!”. Ou os homens: “olha ao teu filho! Anda todo sujo….”. Pais que falam da sua ética, do seu esforço, dos seus objectivos e dos seus triunfos, mas da sua emotividade de adulto, muito pouco; da sua sexualidade, ainda menos. Talvez comentários sobre a possibilidade de empurrar o filho-macho para as raparigas, ou de como resguardar as filhas, longe do macho, para as manter puras. Idealidade como fim, num objectivo já caduco. Assim, e condicionado por estes silêncios, o que ensinar nas aulas de sexualidade? O que falar de sexualidade aos filhos? E quem o fará? E os filhos o que imaginarão da sexualidade dos pais ocupados em transferirem uma ideia tão respeitável e austera de si próprios?
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Os filhos.
Falávamos entre amigos da paternidade. E concordávamos que os indivíduos, enquanto filhos, parecem não conceber a sexualidade dos pais. E como os pais tentam pôr longe deles a ideia da sua intimidade sexual, dessa ou das posteriores relações em que evidenciam por vezes a afectividade, mas apagam a intimidade. Essa intimidade reservada para nós, adultos, com experiência acumulada. Uma intimidade que os filhos não conceberiam nesse homem e nessa mulher tão austeros, como já referi no texto anterior deste jornal (Maio de 2000), ou debato no meu novo livro a sair em Junho.
Para a criança parece haver dois tipos de intimidade: uma sexualidade, ardente, exposta na televisão e nos “outros” e a dos pais, a casta e pura, a dormirem juntos na cama do mesmo quarto, e a desses pais a se cobiçarem o corpo em beijos calmos e costumeiros ao entrarem e saírem de casa para o trabalho, ou para dizer bom dia. Sem exprimir desejo. Tenho observado crianças a observar rapazes e raparigas em lutas de corpo a corpo de relação sexual. E comentar o caso com amigos. Mas, nunca espreitando essa mesma luta dentro do quarto dos pais. Quando há estrato social que permita quartos separados de adultos e crianças. Se é no mesmo sítio por causa do estrato da família, o hábito da zurra dos corpos em acto sexual, cria o hábito do ignorar, de ser parte dum real que á muito material e faz parte da vida. Mas, o erotismo que os adultos-pais gostam de reservar para si, não fica no imaginário da criança associado a eles.
Toda criança parece pensar que nasceu da sua mãe e é mantida pelo trabalho do pai. Modelo central. Nasceu da sua mãe sem saber qual o motivo, qual a relação pessoal entre esse homem e essa mulher que acontecem serem os seus pais. O filho e a filha não costumam nem imaginar o pai erecto, nem a mãe, húmida e de peitos firmes, à espera de receber o homem que a seduz ou que ela convida a ser parte dela por vários momentos. Prerrogativa do casal guardar essa actividade em silêncio, ou em momentos e sítios diversos, por eles escolhidos, durante a semana, ou férias, ou no fim da semana.
O imaginário da criança é social. E no social não circula a conversa da sexualidade dos pais. Ainda mais, na idade infantil da criança, o pai e a mãe não são pessoas: são seres a tomarem conta dele, a amar, que sabem o que é bom e o que é mau. São pais. E, para pais, há uma definição social aceite por todos: mandam, ganham, ensinam, vigiam, e respondem às questões que nascem da, ainda socialmente cega cabeça do jovem ser. Pais - os que castigam e recompensam conforme o padrão social.
Erotismo entre pais? Alguma vez imaginado? Para orientar o imaginário é usado um mito central do cristianismo judaico, o do nascimento de Jesus. Ou entre os muçulmanos, a existência dum Alá que não tem forma corpórea. Ou entre Budistas, a existência dum Carma para reproduzir seres humanos ao entrarem num outro corpo. Formas de pensar onde não há pai genitor dentro do corpo social, há mãe que gera o filho e um homem que orienta na vida social. Como acontece com alguns grupos sociais para além da cultura Ocidental, onde nem pai existe, porém, toda rapariga filha da mulher pode ser mulher do homem que acompanha a mãe. Facto a surpreender imenso aos missionários dos séculos das descobertas que o tentaram corrigir sem que tenham sido sempre bem-sucedidos. A Coroa Britânica soube calar e deixar fazer. Como os jesuítas da nossa cultura, intelectuais a saberem respeitar os costumes dos grupos sociais das descobertas, apesar de expulsos de muitos dos lugares evangelizados, como pode ser observado a olho vulgar no filme de Roland Joffé, The Mission (1986). Esta ética reguladora da sexualidade desses “outros”, realidade difícil de aceitar pelo pensamento judaico-cristão dos católicos, presbiterianos e outros. Horror ao incesto, recusa em olhar a fêmea que há na mãe, ou o sémen desejoso do pai, porque as divindades não copulam, a e a autoridade é em si austera, ascética. Ideias religiosas predominantes na educação do sexual das nossas crianças neste universo judaico-cristão.
Porque o que os filhos possam pensam da intimidade dos pais, pode causar os ciúmes ou o afastamento afectivo pela suspeita de existir no lar uma realidade por eles ignoradas e não compartilhada. Um segredo guardado entre adultos, no meio dum lar que é a lareira da vida. Vida que é apenas parte dela para todos e uma parte importante, a da afectividade e do desejo, escondida. Nascem os narcisos, nascem os objectivos sexuais conforme as preferências do modelo homem ou mulher escolhido pela criança, pénis ou peitos invejados, suspeitos ou vistos. Caso entendam que pénis e peito não formam parte da realidade colectiva do lar onde as crianças são solicitadas para compartilhar todo, para todo contar, para serem orientados nos seus afectos. Há um que é central e jamais falado: a procura do prazer da carne entre dois seres que não são apenas mãe e pai, são pessoas tal e qual é solicitado que sejam. Os filhos vigiados, não podem vigiar. Os filhos orientados para preservar a sua actividade reprodutiva dentro do seu futuro lar, sabem que há uma lei que orienta o agir dos seus pais sem saberem a base que sustenta esse comportamento emotivo. Comportamento emotivo, elo central da simpatia ou infelicidade do conjunto da casa. Tema difícil, mas necessário de pensar como transferir à nova camada para os fazer seres completos dentro do lar.
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Os pais.
Os pais, ele e ela, desejam. Natural forma de ser, natural forma de agir. Nem sempre a mesma pessoa durante muitos anos. Ou, nem sempre apenas uma pessoa durante o matrimónio ou a legitima união de facto. Não apenas desejam. Têm imaginário para exprimir esse o seu desejo cheio de carinho, ou apenas desejo que acaba por ser carinho ou não. Os pais não são castos nem devem de o ser. A época de virgindade pré-matrimonial ficou já desvirginada. Hoje existem as relações amorosas íntimas. Gostem ou não os pais. Saibam ou não os pais. Queiram ou não ignorar. O casal a ser formado começa pela atracção complementar do corpo. Esse sentimento que os ascendentes guardam para si. Ou podem de forma denominada digna comentar ou agir perante os outros. Conforme a disponibilidade ética dos indivíduos dos estratos sociais. No entanto, nem é difícil entender que existe um jogo erótico prévio ao acto sexual, feliz enquanto privado, privado para poder ser excitante, para ser realmente jogo que abre as alternativas de como entrar um dentro do outro: o corpo apenas, ou o corpo e o sentimento.
A começar pelo sentimento. Essa sedução que o masculino do casal gosta de fazer com um acariciar simpático e destemido no corpo da fêmea que tem em frente. Fêmea que é também mãe dos seus filhos, ou dos filhos de outro que ele herdou ao aceitar essa mulher. Mas, principalmente, fêmea. A sua fêmea. Desligada do facto de ser mãe. Uma mulher que atrai. Um homem que gosta de deliciar essa mulher. Um brincar com os corpos de forma atrevida e mil vezes mudada ao longo do hábito de amor dentro do modelo aceite socialmente. Um jogo passional que acaba por ser sério no minuto final de se esperarem um ao outro. Dessa intimidade impossível de transferir com palavras à descendência. Esse laço que existe entre dois, uni ou bissexual - como hoje em dia é aceite nos países neoliberais e sempre o foi nos países denominados atrasados. Esse laço que constrói a pedra fundamental da interacção da casa. Um laço a não ser partilhado por impossível de dizer. Mas a ser sabido como existente pelos membros do lar, conforme idade e espistemologia, resultado do ardor de dois adultos em procura de compreensão da vida colectiva depreendida da flor do seu segredo, como gosta dizer Almodóvar (1995).
3.Epílogo.
E a conversa ia acabando, para o meu amigo havia uma jovem criança na mente da ternura paterna, as minhas pareciam águas passadas. Reflecti. Aprendi. Escrevi. Será bom ou não mostrar o lado humano, o lado pessoa da maternidade e paternidade, da parentalidade procriadora?
É um tema aberto. Porque parecia ser correcto não debater ou nunca dizer aos filhos em casa o que se passava no segredo da alcova. É para dois e só para eles. Tal e qual são para dois e mais ninguém os amores dos filhos. Assunto e debate que as minhas águas passadas, já desaguadas no oceano da vida adulta, me têm ensinado não serem correctos, por causa das necessárias precauções a serem tomadas para os mais novos não entrarem no perigo de serem remetidos a um bebé pensado por um dos lados. De não serem socialmente mortos por um vírus que no fim mata o corpo, pela causa, mais que todas importante, de se saber que entre adultos há assuntos que são apenas para eles e para mais ninguém. Porque os novos seres, em crescimento para a vida adulta, não têm as ideias dos símbolos a serem jogados no jogo da sedução, porque não têm emotividade desenvolvida para entenderem as emoções dos mais velhos e porque há anos de experiência entre um ser e outro a habitarem a mesma casa. Será este mais um domínio do saber a ser entregue ao Estado a explicar? À catequese, no caso dos cristãos, às aulas de Alcorão para os muçulmanos? Ou à Antropologia, capaz de falar dentro do seu método comparativo, como vivem os adultos de outras latitudes, ou os grupos minoritários dentro do nosso país, para ser relativa a experiência do lar? De quem o direito de perguntar primeiro, de quem a obrigação de falar? Qual o limite? Freud (1911), Klein (1932) e Alice Miller (1982) deram as suas ideias. Será que o saber doutoral é útil para compartilhar a pedra base da fundação do lar?
A resposta é de quem leia.
5. Bibliografia.
Almodôvar, Pedro, 1995: La flor de mi secreto, filme.
Freud, Sigmund, (1912) 1919: Tomem and tabu, George Routledge and Sons Ltd, Londres.
Hales, John, (1581), 1907: “A discourse of the common weal of this realm of England”, in A.C.Tersen: John Hales, sa doctrine et sons temps, Avallon, Dijon.
Iturra, Raúl, 2000: O saber sexual das crianças. Desejo-te, porque te amo, Afrontamento, Porto.
2000: “Pais e cônjuges”, in A Página da Educação. Maio, Profedições, Porto.
Joffé, Roland, 1986: The Mission, filme.
Klein, Melanie (1932) 1959: La psychanalise des enfants, P.U.F., Paris.
Maquiavel, Nicolau (1516) 1983: El Príncipe, Planeta, Barcelona.
Miller, Alice, (1983) 1987: For your own good. The roots of violence in child-rearing, Virago Press, Londres.
Raul Iturra
Original A Página da Educação, 26 de Junho de 2000
Revisto em 20 de Outubro de 2013.