A escola pública é, em muitos casos , uma espécie de gueto social e educativo
Na passada sexta-feira, li neste jornal que a Federação Nacional dos Professores (Fenprof) tinha pedido em comunicado uma discussão parlamentar sobre um recente diploma do Governo relativo ao novo "Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo". Não conheço o texto deste diploma, apenas o que o PÚBLICO noticiou. Mas creio que se trata de uma grande ideia da Fenprof: um debate parlamentar sobre o sistema educativo nacional.
Esse debate poderia começar precisamente por examinar o protesto da Fenprof contra a alegada intenção do Governo de introduzir ou alargar o financiamento aos alunos, em vez de às escolas ou às turmas, para que as famílias possam optar pela escola da sua preferência. Diz a Fenprof que isso significa financiar o ensino privado à custa do ensino público. Esta asserção é chave para compreender o que está em jogo no plano conceptual, independentemente das exactas intenções do Governo.
Que o ensino público seja identificado com o ensino oferecido por escolas do Estado é um raciocínio que se compreende por parte do Partido Comunista e, presumo, do Bloco de Esquerda. Esses partidos são contra a economia de mercado e a iniciativa privada. Mas obviamente não pode ser subscrita pelos outros três partidos - o PS, o PSD e o CDS - pois estes são contrários ao monopólio estatal sobre a sociedade civil. Como eloquentemente explicou aqui, na passada quarta-feira, o socialista Francisco Assis, o socialismo democrático defende a economia social de mercado.
À luz do conceito de economia social de mercado, o papel do Estado é supletivo, ou complementar, relativamente à sociedade civil - não visa substituir a sociedade civil. No plano educativo, isto é entendido hoje como o dever do Estado de garantir o acesso universal à educação, pelo menos no período da escolaridade obrigatória. Mas isso não significa que os serviços educativos tenham de ser estatizados, ou fornecidos universalmente por escolas do Estado. É um pouco como o dever de garantir o acesso universal à habitação: só os comunistas entendem esse dever como equivalente a defender que o Estado deve ser o único, ou principal, fornecedor de habitações (e o resultado ficou à vista). Os defensores da economia social de mercado defendem que o Estado deve fornecer habitações sociais, ou subsidio para habitação, a quem e quando o mercado não é capaz de as fornecer.
Esta é a questão crucial, no plano programático. E ela não separa a esquerda da direita, como uma vez mais explicou Francisco Assis. Ela separa as famílias políticas democráticas das famílias políticas estatistas (para evitar o termo desagradável de autoritárias). Aquelas, tal como estas, podem ser de esquerda ou de direita.
À luz destes princípios, não há qualquer razão para identificar o ensino público, ou o serviço público de ensinar, com a escola do Estado ou com o serviço educativo fornecido apenas pelas escolas do Estado. Todas as escolas - estatais, privadas ou cooperativas, desde que aceitem certos princípios de serviço público, a definir pelo Parlamento - podem fazer parte do sistema público de educação, ou prestam um serviço público na esfera educativa. Não existe por isso, entre as famílias democráticas, qualquer razão de princípio que negue a possibilidade de o Estado financiar directamente os alunos para que estes possam frequentar a escola pública - isto é, estatal, privada ou cooperativa - da sua escolha.
Em rigor, como explicou Karl Popper, a ideia do financiamento ao aluno, e não à escola, é originariamente uma ideia de esquerda, muito comum entre os socialistas não-marxistas de Viena da década de 1920. Só mais tarde Milton Friedman retomou o conceito com uma justificação não-socialista.
A defesa socialista do financiamento ao aluno reapareceu na década de 1990, primeiro na Suécia, depois em Inglaterra, quando os trabalhistas de Tony Blair e os sociais-democratas suecos se tornaram defensores do voucher ou financiamento ao aluno. A justificação é a mesma de Viena em 1920, e é também fundada na justiça social: se o Estado só financia as escolas do Estado, estas tenderão a receber apenas, ou sobretudo, os alunos mais carenciados, enquanto as não- estatais tenderão a tornar-se exclusivas das famílias mais confortáveis. Além de criar um fosso desagradável na conversação social, essa divisão pode condenar os alunos das zonas mais carenciados a um espécie de gueto social e educativo. Acresce ainda que, se as escolas do Estado tiverem o financiamento garantido e não tiverem de concorrer entre si e com as não-estatais para conquistar alunos, correm o risco de passar a estar ao serviço da burocracia e não dos alunos a quem devem servir.
Seria realmente interessante, como propõe a Fenprof, promover um debate sobre este assunto no nosso Parlamento."
PS : João Carlos Espada - Público